O QUE SIGNIFICA "TER VIDA ESPIRITUAL"?



Posso provar que Deus existe usando apenas meus saberes de amador em matéria de astronomia, alguém duvida? Então vamos lá.

Existem estrelas de diversos tamanhos e intensidades e, dependendo desse tamanho e dessa intensidade, existem distâncias diversas em que um planeta pode se situar em relação à estrela para que em sua superfície ocorram as condições mínimas necessárias para o aparecimento e o florescimento da vida vegetal e animal tal como as conhecemos. É a chamada "zona habitável". Se a Terra estivesse localizada na mesma posição em que está mas nossa estrela fosse um pouco maior ou um pouco menor do que o sol, essas condições poderiam ser idênticas, no primeiro caso, às de Vênus, e, no segundo, às de Marte, e daí seríamos, no primeiro caso, ardentes e ácidos demais e, no segundo, gélidos e áridos demais para servirmos de berço ideal para o mais simples dos organismos vivos. Portanto, estamos na distância certa em relação à estrela de dimensão e brilho certos para que ocorram as condições mínimas indispensáveis ao surgimento e ao desenvolvimento da vida orgânica. Magia!

Mas isso não é tudo. Parece haver um equilíbrio delicado entre o calor que vem de fora, do sol, e de dentro, do núcleo do planeta. De nada adiantaria estarmos na zona habitável em relação a nossa estrela, se nosso núcleo tivesse se resfriado a tal ponto que deixasse de emanar calor de dentro para fora. Além disso, se esse núcleo, no caso, de ferro derretido, não existisse ou fosse composto de outros elementos minerais, não se formaria o gigantesco escudo que existe em torno da Terra, o campo magnético, que nos protege das constantes e terríveis cargas energéticas trazidas pelo vento solar. Milagre!

E olha só, nem todo corpo planetário possui, como o nosso, o movimento de rotação, ou seja, alguns não giram em torno do próprio eixo, mantendo sempre a mesma face voltada para a estrela, o que pode tornar um lado escaldante e outro eternamente escuro e gelado. Em relação a isso, algumas teorias científicas defendem que, em certo ponto de nossa história geológica, um corpo estranho, enorme, trombou de raspão contra nós, arrancou um pedaço, que se tornou a Lua, feita dos mesmos compostos que a terra mãe, e ao mesmo tempo imprimiu no planeta o giro de vinte e quatro horas e o eixo inclinado que criou as variações do dia e da noite e as diferenças de estações entre os hemisférios norte e sul, durante o período de translação em torno ao sol. Se esse suposto impacto não tivesse ocorrido ou tivesse ocorrido num ângulo ligeiramente diferente e, em consequência, se nossa rotação não existe, ou existisse em outro grau ou velocidade e não se desse no exato eixo inclinado em que se dá; se o giro diário, como ocorre em outros mundos, fosse veloz ou lento demais e se a lua não nos tivesse sido arrancada num pedaço do tamanho tal e qual, passando a rodar em torno de nós na distância ideal, tudo seria alterado, a subida e a descida das marés, a circulação, ou não, dos ventos, o fluxo das correntes marítimas, tudo, enfim, e então não podemos garantir que a vida teria sido capaz de surgir e prosperar em outras condições senão essas, irretocáveis, em que surgiu e prosperou. 

Caramba, pensem bem, é muita coincidência! Logo, não pode ser coincidência, ou seja, isso só pode estar seguindo o plano de um engenheiro cineasta genial, é ou não é?

Além disso, devemos levar em conta a Lua em si. É apenas uma, mas poderia ser duas, ou três, e se assim fosse, as condições no solo terrestre também seriam mudadas de forma extrema. Mas ela é apenas uma e, vejam se isso não é coisa de um artista matemático, quando ocorre um eclipse total do Sol, isto é, quando nosso satélite se coloca inteiro entre o planeta e a estrela, ele cobre cobre o astro rei por completo e na medida exata. Nossa Lua poderia ser menor ou estar numa distância menor e então sobraria um halo de luz em torno dela no momento do eclipse, mas não, a cobertura é perfeita, um show, uma obra prima claramente identificável, só não vê, só não crê num Deus preciso e plástico desse quem não quer.

Há trinta anos atrás as informações que fundamentam tais conclusões já eram disponíveis, mas estavam muito menos acessíveis aos leigos. Hoje, porém, não mais, qualquer pessoa que tenha interesse em saber desses e de outros fenômenos, é só buscar na web as dezenas de sites excelentes que trazem notícias atualizadas a respeito do funcionamento do cosmos. 

Exemplo:


Existe uma pá de outros fatores que vão na mesma linha, no sentido de que a Terra está num lugar e vive um momento cósmico ideal, sem o que seríamos como os demais corpos celestes do sistema solar e bilhões de outros, universo afora, absolutamente inapropriados à florescência de organismos vivos. Ora, tanta perfeição só pode ser trabalho de um Ser Superior, como não?

Só tem um probleminha. Nos últimos dias o telescópio Hubble teve um apagão e os técnicos por pouco não conseguiram religa-lo. Seja como for, há outro equipamento a caminho, muito melhor, que promete revelações espetaculares, mal posso esperar. O Hubble tem dois focos, como nos ensina o texto do link acima: o interior da Via Láctea e o universo exterior. Se ele mira para dentro da galáxia, mostra bilhões de estrelas e seus planetas, quasares, nebulosas, buracos negros, zonas de matéria escura, etc. Se aponta para fora, pode revelar milhares, milhões, talvez bilhões de outras galáxias. Multiplicando bilhões de galáxias por bilhões de mundos, temos o resultado óbvio de que é praticamente impossível, estatisticamente falando, que não ocorram milhões e milhões de situações ideais como a vivida por nós na Terra, capazes de produzir e sustentar o fenômeno da vida algo semelhante àquele que ocorre aqui. Portanto, trata-se apenas, afinal de contas, do jogo do acaso que dispõe de um número de peças quase infinitas.

Os espíritas kardecistas, ao lerem essas linhas, vão abanar a cabeça e pensar a seu modo, o modo do poder benevolente: "coitadinho, o intelectual materialista não consegue vislumbrar que o universo está repleto de vida que se encontra oculta aos olhos humanos, vida de seres diáfanos, espíritos que prescindem das condições materiais de existência, luz, calor, alimento sólido, água, e que podem sobreviver mesmo em regiões do éter inacessíveis aos sentidos limitados dos corpos encarnados". O que posso dizer a esses iluminados? Digo que estou fazendo o melhor possível com aquilo que está a meu alcance, usando meus sentidos terrenos, meu poder de inteligência pessoal associado ao conhecimento das gerações, acumulado com o passar dos séculos e aperfeiçoado com as contribuições essenciais da ciência e do aparato técnico da modernidade. Posso não estar indo muito longe com o auxílio luxuoso de todo esse conhecimento, mas estou fazendo o que posso com os recursos humildes que meu tempo e meus contemporâneos dispõem para mim, por exemplo, como astrônomo amador, e de forma rápida e gratuita, nos sítios da internet. Não é muito, posso não estar indo muito longe, mas é uma atitude sincera, esforçada, hão de reconhecer. Tanta gente há por aí que não está nem aí para o conhecimento, desse mundo ou do além, não é verdade? Então, parabéns para mim, uai! E se, como alegam esses sábios de outro mundo, ciência e religião andam par a par, é inevitável que, mais cedo ou mais tarde, eu encontre, por caminhos tortos, a luz que eles já alcançaram pela via direta da doutrina expressa há mais de um século por Alan Kardec no Livro dos Espíritos e no Evangelho Segundo o Espiritismo, é ou não é? São poderosos mas são benevolentes, terão pena de mim, mas terão paciência comigo, tenho certeza disso, afinal, sigo meu caminho, de consciência limpa. Pode ser um caminho rasteiro, mas não rastejante, afinal, procuro a estrela guia, pequena, mas visível, a olho nu, ou através de um telescópio, no mar infinito da escuridão e da dúvida.

Nesse ponto chegamos, enfim, à pergunta que dá título a essa postagem: o que significa "ter vida espiritual"? 

Às vezes eu tenho a impressão de que muita gente confunde vida espiritual com vida religiosa, o que, na minha opinião, é um equívoco. É possível ter vida espiritual e religiosa, é possível ter vida espiritual sem ter vida religiosa e é possível ter vida religiosa sem ter vida espiritual, e essa última hipótese, infelizmente, parece ser a mais comum. 

Aliás, o que mais encontro em meu caminho é gente que se diz religiosa mas na prática manifesta um materialismo renitente e encarniçado, na medida em que vive uma vida quase que totalmente voltada para questões materiais. O sujeito passa a semana toda na luta desumana para obter bens palpáveis, prestígio no seio de seu clubinho social e poder. De repente, no domingo, volta seus olhos para os céus, faz umas preces apressadas, deposita alguns realísticos reais a conta de dízimo nos cofres da igreja, participa, compartilha no facebook o arsenal de discursos edificantes de um sentimentalismo barato de dar nos nervos ou, na melhor das hipóteses, participa de algum projeto de resgate de ovelhas desgarradas, achando que com isso pode comprar seu ingresso no paraíso como se Deus fosse um porteiro de estádio de futebol, e chama tais vivências alienadas, de hora marcada e espaço institucional demarcado, de vida espiritual. Não por acaso, quando conversamos com um tipo desses, raramente apreendemos algo além de trivialidades que não acrescentam nada a nosso espírito.  

Seguindo esse raciocínio, observo que a maioria das pessoas que conheço e que se definem como religiosas manifestam um profundo desinteresse pelas vivências do espírito e acho que uma coisa tenha a ver com a outra.

Calma, me explico, vamos por partes. 

Primeiro, o que entendo por vida espiritual? Muito simples: é a vida espiritual não alienada, é a experiência da vida cotidiana como vida espiritual, partindo do pressuposto de que o espírito humano é uma construção histórica e coletiva. 

Um exemplo trivial vai nos ajudar a compreender o que quero dizer com isso. Pensemos no automóvel. Para que ele exista hoje, foi preciso que, milhares de anos atrás, uma comunidade de pessoas, talvez auxiliada por um ou outro indivíduo excepcionalmente inteligente, tenha chegado à conclusão de que duas rodas ligadas por um eixo pode gerar o instrumento utilíssimo da carroça. Depois foi necessário domesticar animais, cães, cavalos, bois, e adaptar seu comportamento dispersivo à função única de puxar carga. Agora, no ponto em que hoje nos encontramos, nos parece óbvio que as coisas tenham caminhado nesse sentido, mas civilizações avançadas como a dos Incas desconheciam esse princípio básico de tração, mesmo tendo desenvolvido técnicas excelentes de construção, comunicação, burocracia estatal, astronomia, etc. Mas foi preciso esperar a revolução industrial para que um motor pudesse ser acoplado ao mecanismo ancestral. Cerca de quarentas anos atrás, o ramo da eletro-eletrônica já estava desenvolvido o bastante para que pudesse integrar o complexo de tecnologias que compõem o automóvel moderno e então, voilá!, agora é só se assentar na poltrona confortável, ligar o ar condicionado, o rádio, girar a ignição e... viajar, sonhar! Quando eu era menino a gente andava em Jeeps e Rurais duros como jumentos e que possuíam uma peça chamada "platinado" cuja função era ajudar o carro a dar a partida sem que fosse preciso girar com força uma manivela engatada do lado de fora, abaixo do radiador, como era em seus predecessores. Algo maravilhoso, se comparado ao que havia antes, mas se entrássemos num atoleiro muito profundo, o que, na época, não era incomum, e o platinado molhasse, como acontecia com frequência, acabou, a furreca apagava e não tinha mais o que a fizesse pegar. Vivi isso muitas vezes, um sofrimento danado. Quem hoje não lida com tais problemas nem imagina que poderiam continuar sendo problemas caso uma série incontável de pessoas não tivesse se debruçado sobre o sistema de ignição até ser capaz de aperfeiçoa-lo com o apoio do ramo da eletro-eletrônica. E é assim que, toda vez que abro o motor de um carro, meus olhos brilham, fico embasbacado, observando cada cabo, cada roldana, cada corrente, cada tubo, daqui e dali. Quando o macaco hidráulico o levanta para a troca de óleo, entro embaixo e fico admirando, demoradamente, a complexa estrutura do escapamento e da suspensão, imaginando quantas milhares de almas quebraram a cuca em pranchetas e oficinas, trabalharam milhares de horas para aperfeiçoarem cada um desses detalhes e, assim, encontram-se ali depositadas, de alguma forma ainda vivas nessa coisa que parece meramente material apenas para quem não a vê com os olhos do espírito, olhos que enxergam nesse "objeto físico" todo o gigantesco esforço das gerações, historicamente e comunitariamente empreendido desde tempos imemoriais. A visão histórica humaniza tudo, é a alma da humanidade contida em cada um de nós que é capaz, por sua vez, de enxergar a construção histórica e comunitária que está no cerne de toda obra humana. O imediatismo, ahistórico e anti-intelectual, é rasteiro, iguala um automóvel a uma pedra sem alma e desumanizando as coisas humanas desumaniza a tudo e a todos, o que observa e o que é observado. 

Por isso é muito comum encontrar gente que se diz religiosa e é altamente desumanizada, já que lhe falta essa visão da construção histórica e comunitária das "coisas" humanas e já que não compreende e/ou não experimenta a riqueza dos modos de fazer, saber e viver o mundo, a riqueza do patrimônio cultural da humanidade.

E olha que estão perdendo uma oportunidade histórica única pois nunca esta experimentação esteve tão à mão das pessoas, em larga escala. Poucas décadas atrás, dificilmente o habitante de uma grande cidade que possuísse um mínimo de recursos materiais poderia experimentar formas de saber, fazer e viver muito diversas do que aquelas que herdou de seus antepassados, próprias de seu país, sua comunidade local, sua esfera familiar. Hoje não. Se sou um sujeito de classe alta ou média ou mesmo de classe pobre com a mente aberta e a força de vontade necessárias para sair buscando fontes gratuitas de experiência e aprendizado, posso, por exemplo, em Nova York ou Paris, aprender a capoeira, arte marcial que os africanos escravizados criaram e desenvolveram em terras brasileiras. Ou posso aprender em Recife, Campo Grande ou São Paulo o Karatê, o Kung Fu, o Tai Chi Chuan e uma infinidade de técnicas de luta orientais, as quais possuem implicações estéticas e terapêuticas comprovadas. Cem anos atrás, o impressionismo francês já não devia muito à pintura estilizada do Japão? Imaginem agora, quantos chineses que se tornam excelentes pianistas e violinistas seguindo a extensa linhagem de mestres compositores e musicistas do ocidente? Quer aprender culinária Tailandesa em Honolulu? Moleza. A ciência e a tecnologia impulsionada pela revolução industrial, a partir da Europa do século XIX, afinal não é, hoje em dia, acessível a um grande contingente de pessoas na maior parte dos países do mundo, em universidades, congressos, laboratórios, fábricas? O habitante do sertão do Xique-Xique não pode tomar a mesma vacina contra a Covid-19 no postinho de saúde do povoado mais próximo, a mesma acessível à Patricinha de Beverly Hills? Tudo isto é o espírito, é a alma da humanidade, historicamente e comunitariamente desenvolvida, e gradativamente sendo oferecida a indivíduos, nos quatro cantos do planeta, para que a experimentem e a aperfeiçoem, sirvam-se dela e a enriqueçam. 

Assim sendo, podemos dizer que um sujeito, um ser individual, é tanto mais rico de alma, é tanto mais espiritualizado, quanto mais ele tenha acesso ao patrimônio cultural da humanidade, quanto mais ele se proponha experimentar e experimente de fato esse inesgotável tesouro imaterial que pouco a pouco vai sendo mundializado. Aliás, esta é a parte boa da globalização, tornar acessível de parte a parte o que de melhor a humanidade produziu. Aposto que existe alguém hoje em Jacarta que ensina grego clássico numa universidade. Aposto que existe algum inglês que mora em Luanda e nesse exato momento está curtindo no Youtube a sanfona de Dominguinhos. A parte ruim é que esse processo está também determinando a imposição de uma só cultura global padronizada, artificial, afetada, de uma pobreza espiritual acachapante, mas isso é outro assunto. 

Por outro lado, essa ampla experimentação do patrimônio histórico cultural da humanidade costuma ser muito limitada por nossas incontornáveis escolhas profissionais. A atividade profissional é muito sedutora porque pode nos proporcionar sustento, enriquecimento, reconhecimento e posição social mas também pode desencorajar nosso desenvolvimento espiritual porque dá a ilusão de que basta exercermos uma profissão para termos tudo quanto é necessário para nossas vidas. É assim que nos tornamos carentes auto-suficientes: auto-suficientes porque nos sentimos plenamente satisfeitos em termos materiais e sociais e, ao mesmo tempo, carentes porque ficamos cada vez mais pobres em termos espirituais. Podemos nos tornar, nesse processo, por exemplo, um médico que possui todo o conhecimento acumulado pelas gerações e pela ciência a respeito do cérebro, do coração ou dos olhos humanos e ser ignorante em absoluto em relação a tudo o mais. 

Por isso mesmo que não é raro encontrarmos sacerdotes e crentes de todas as religiões que sabem na ponta da língua todos os dogmas contidos no livro santo mas não possuem o menor conhecimento a respeito da vida concreta dos homens, não decoraram uma só receita interessante para preparar para amigos e familiares num dia de celebração descontraída entre iguais, não sabem cantar ou dançar, não praticam artes marciais ou qualquer outra técnica de meditação, não se interessam por execução musical, pintura ou escultura, clássicas ou modernas, não se aprofundam em nenhuma das ciências, nem sequer naquela que demonstraria da forma mais escrachada as dimensões insondáveis da obra do criador, isto é, a astrofísica, tornando-se assim religiosos que não experimentam na prática a vida espiritual, religiosos pobres de alma. 

Confesso, não tenho a menor fé nesse tipo de cara.

Claro, a justiça divina é tão misteriosa como o cosmos e ser alguém rico em termos espirituais não dá segurança nenhuma de satisfação vital, paz de espírito ou equilíbrio psíquico, seja lá o que isso for. Conheço pessoas super pobres de espírito e aparentemente muito mais felizes do que outras, abertas, plurais, geniais até. Enfim, não existem escolhas fáceis nesse mundo, não existem perguntas fáceis, não existem respostas fáceis. 

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