CRONICRÔNICA DESAGRADÁVEL SOBRE A RELAÇÃO ENTRE A IDEOLOGIA DO MÉRITO E A LÓGICA ARQUITETÔNICA DO ABANDONO



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Derrama alegria em todos os corpos! 
Que ninguém possa esquecer esta noite. 
Hoje tocarei a flauta de minha própria coluna vertebral. 
De alegria suplantarei os gritos das hordas 
que esqueceram a doçura de um lar. 

Maiakówski 


Certo dia, em minhas pesquisas visuais pelo centro de São Paulo, um prédio alto do Largo do Paissandu chama minha atenção. Porque? Existe ali algum senso do absurdo que, do nada, se destaca, se ilumina a meus olhos. Paro... Demoradamente, miro a coisa, cara a cara, sem juízo, sem véus, como quando encaramos a joia hipnótica do olho de um gato, num jogo de espelhos inquietante... Há estranhezas que capturam nossa imaginação de modo doloroso, mas magnético. A vontade primeira é dispensar, dispersar, prosseguir, fugir. Sabemos que não devemos encarar, mas é fatal! Tudo bem, vamos lá, é preciso aceitar, sacar o celular, fotografar. Eis a imagem:



Feita a foto, devemos nos resignar, cumprir nossa obrigação, assimilar os detalhes da obra bizarra do homem e do tempo que o deustino nos apresenteia. A estrutura alta e delgada, agora em frangalhos, demonstra que teve seu esplendor de modernidade, sabe-se lá quantos anos atrás. Imagino que foi construída para uso comercial, o formato é típico. Em contraste com as da vizinhança, de residenciais mais antigos, feitas do modo tradicional, com paredes de tijolos rebocados, pintadas e repintadas ao longo dos anos, a fachada da foto, senão vejamos, é composta por placas de vidro esverdeado que há anos perderam o brilho original, cobertas por muitas e muitas camadas do pó e da fuligem da cidade. Observo, observe: aqui e ali falta uma placa. Numas, botaram tapumes de madeira ou papelão. Noutras, sente, o buraco aberto aponta para o abismo. “Aqui tudo parece que é construção e já é ruína”, a flor do mal de Caetano vem, me arranha. Não constato o movimento de alma viva, animal ou humana, nas entranhas da casamata. Do solo ao céu, uma só enorme presença imponente, todavia impotente, espécie de fantasma. Sabemos que existe vida aí, em algum lugar, mas ela não nos dá sinais sensíveis. Se existe, é na ausência, e isso, ou a falta disso, incomoda. Seguindo essas pistas, concluo que se trata de um dos tantos cortiços verticais onde, atualmente, vive o povo pobre organizado que busca moradia ocupando imóveis abandonados do centro velho de São Paulo. No último dia primeiro de maio do ano dois mil e dezoito de nosso Senhor Jesus Cristo, feriado do dia do trabalhador, acordo, ligo a TV e de chofre me deparo com o horror da cena: um arranha-céu inteiro envolto numa coluna de fogo amarelo, alto, alvoroçado. Desde criança e a vida inteira, fui um fissurado observador do fogo, sei do que estou falando. Apesar disso, ao ver a imagem na tela, ou seja, de uma distância fria, não percebo que tudo está prestes a desabar. Mas é questão de segundos... em certo ponto, o foco da câmera se aproxima e enquadra um grupo de bombeiros tentando salvar alguém a partir do prédio vizinho, mas daí tudo se precipita, no momento em que lançam as cordas e tentam prendê-lo, toda a estrutura vai abaixo, tragando o pobre homem para o fundo dos infernos, um pesadelo inimaginável!... Não reconheço o prédio da foto de imediato, vou perceber horas depois, ao acompanhar pelos meios de manipulação os desdobramentos do horrendo acidente. Pause. Admire agora essa outra foto que fiz com meu simples celular. 


Bem no fundo, de propósito, deixo aparecer um vulto, apenas. É assim mesmo que quero que seja visto, anônimo, como que fazendo um só com a desolação da morada quadrada e árida onde vive. Isso mesmo, esse sujeito, há alguns meses, habita essa calçada onde aparece na foto. O prédio e a calçada foram reformados, aplainados, embranquecidos, disciplinados pouco antes do inquilino se instalar aí no local. Suspeito que o coitado entenda que a obra foi feita para ele e, simplesmente, tomou posse após a inauguração. Os donos do lucrativo estabelecimento não se dignam sequer em mandar algum empregado varrer, uma vez por semana que o seja, esta calçada. Mais recentemente fotografo a primeira assinatura em spray sobre a parede e me pergunto porque o rabisco demorou tanto, já que a tela, branquíssima, está ao nível do chão, o lugar é ermo e o dono ausente, ou seja,  perfeito para investidas noturnas. 


A massa sem graça do galpão agora ocupa quase todo o lote, mas sobrou atrás um minúsculo quintal, bastante porém para abrigar um pé de pinheiro e outro de coqueiro, cova pequena para seus grandes defuntos. A mim me parecem tristes, acuadas, intimidadas, o que acham? 


Vê-se que, com os anos, foram virando coisas inertes também, invisíveis em sua perda de significado, na medida em que se fecha o cerco de cimento, aço e cal. E que tal essa escada que aparece aqui com despojos da natureza e da moderna humanidade e de que os donos e administradores da farmácia também não acham que devem cuidar? 


A calçada, podem alegar que é dever público varrer, mas, gente, já não cumprem mais sequer os deveres privados? Em outras palavras, a reforma higienizou o ambiente e depois o deixou ao azar ou poderíamos dizer que essa lógica arquitetônica do abandono criou, no coração da urbe sem coração, uma no man’s land a mais, terra de ninguém, rica de oportunidades? O centrão velho está repleto delas, veja o registro que fiz de uma outra, que bela! 


Pois bem, essa do fundo da farmácia não passou batida para o tal fantasma vivo da foto. Ele a está usando para comer, cochilar, assombrar os passantes, dormir, guardar tralhas, deitar dejetos como os que vemos nas imagens seguintes. Esse montulho no meio do retrato abaixo é ele mesmo, o tal, tirando um cochilo em sua mansão, não é só saco preto de lixo não. 


As solas da bota apontam para fora do plástico que cobre o resto do corpo. Sei, é difícil de ver mas a massa informe aí é, sim, nosso homem, um ser como nós, que aparentemente tem rosto, olhos, língua, identidade, estilo, caráter. Aqui nesse outro registro nós o vemos assentado, digamos, numa varanda imaginária, com a calça de lona e as botinas enegrecidas por camadas e camadas de sujeira suja, ou seja, sujeira urbana. 


Claro, ele pode usar a calçada abaixo para esse ou outro objetivo, afinal, é tudo uma coisa só, seu terreno, seu reino, seu nadifúndio! Por toda a área tropeçamos em restos, orgânicos, inorgânicos e desorgânicos e, quando ele anda por aí pela cidade, ausente, tais são os sinais da presença dele que não se sente. 


A farmácia costuma deixar caixas novas muito boas, vazias de seus remédios, ao pé do poste da esquina, para que as levem os catadores de recicláveis. Pois eu, certa feita, tive a ventura de ser testemunha de um enorme cocô, sozinho, deitadão numa dessas lindas caixas, uma verdadeira obra de arte conceitual! Ali nasceu, ali ficou! Ainda ontem, pude surpreender o artista de joelhos na rua e arrumando na beira da calçada, feito numa mesa rasteira, japonesa, as peças de um ritual. Quem dera fosse um ritual pagão e que o xamã tivesse uma roda de discípulos assombrados, pelo menos não o veríamos assim tão só. Mas trata-se de um rito solitário, isto é, inepto, sem transentidos sociais, apenas um indício a mais da prisão do self onde o cabra se mantém trancafiado. Quando o vejo, de passagem, está dispondo cerimoniosamente, com ares falsos de criança excitada, os olhos patéticos brilhando, seus tesouros simbólicos: uma garrafinha de Coca Cola lambuzada (pensei no filme “Os Deuses estão Enlouquecendo”), uma marmita de isopor horripilante, cuspindo comida podre pelas bordas e duas bitucas de cigarro velhas imundas... Suas velas, quem sabe?... Tenho visto ultimamente muita gente defendendo por aí, sem mais pensar, que cada pessoa encontra sua posição na sociedade capitalista conforme o mérito próprio, individual. Se se esforça, se tem mérito, essa pessoa conquista o céu da fortuna, da segurança, do conforto, do gozo ilimitado de bens, serviços e muito muito muito mais. Se não, se ela não faz por merecer, desce ao purgatório do olho da rua, porque a pena para quem não se empenha é não ser nada, ou seja, é ser o nada, ou seja, é não ser, ou seja, é sina pior que morrer. Resolvo então fazer uma pesquisa de campo, entrevistar aquele homem das cavernas da calçada recém-civilizada e depois abandonada e tentar ver se percebo nele alguma coisa que me prove o que raios ele fez para desmerecer assim a condição humana a ponto de agora jazer assim como um animal natural, sem teto, sem cultura, sem o abrigo, o zelo, o conforto, o calor, o sentido, a razão de viver que nos dá a sociedade dos homens, das mulheres, dos velhos, dos adultos, dos jovens e sobretudo das crianças. Começo pelo começo, digo um “aloha”: “olá”. O personagem, nesse ponto, vira gente, de repente e abruptamente, mira-me sem me ver mas com voraz hostilidade e grunhe como um cão que perdeu o juízo, pois viveu tanta indiferença ou tomou tanta porrada que já não reconhece mais o respeito, a atenção ou o afago. Estou abismado, não consigo a resposta que vim procurar, não consigo nada, não consigo saber sequer seu nome!

Muitas semanas depois, encontro a seguinte situação na calçada:


A última medida do dono da farmácia foi mandar pintar uma faixa de cor roxa para destacar o letreiro da loja, que andava pouco atraente no contexto branco sem vida. Quanto ao lixo espalhado na calçada, como sempre, está indiferente.



Tempos depois deve ter cedido aos apelos da vizinhança para que o ocupante da área dos fundos da farmácia fosse desalojado e mandou instalar cerca de grades e rolos de arame farpado. Ficou perfeito agora, uma beleza!



Como o desleixo e o abandono atrai desleixo e abandono, a calçada que não pertence mais ao Noumenslend, agora virou depósito de lixo de construção, sofás rotos e armários velhos desmontados.



Meses depois o local continua sendo um lixão e o sujeito ainda não abandonou o local, apenas, não conta mais com seu quarto privado.




Não tem mais o flat e agora dorme mesmo na calçada. É o mesmo homem.



O local do desastre, um ano e meio depois. A igreja atingida está em lento processo de reforma. 

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