PORQUE A VELHA MÍDIA NÃO FAZ MAIS FESTIVAL DA CANÇÃO
Nasci e cresci até os nove anos no interior de Minas Gerais, na década de sessenta do século passado. Foi um milagre ter acontecido da minha cidadezinha possuir um cinema nessa época. Tantas outras, país afora, jamais tiveram e jamais terão tanta sorte.
Com o avanço da TV, o empreendimento tornou-se um caça níqueis. Está certo que o dono, o italiano Ítalo, nunca cogitou de exibir um filme de Godard, pouquíssima gente ia querer ver. Mas quando eu era menino, nem Bruce Lee funcionava mais, tanto que logo vi, com grande tristeza, nossa pequena fábrica de sonhos fechar de uma vez por todas para dar lugar a outra, de roupas, como mais convém a uma fábrica.
Faz um ano que escrevi sobre esse cinema no texto do link abaixo, entitulado "Saudade de Brincar de Briga":
Acontece que vim ao mundo em seis de janeiro, dia de "Santo Reis", minha estrela guia brilhava forte pois, vivendo numa nação que se desenvolveu como uma grande empresa escravagista e nunca primou pelo investimento em bens culturais, eu, além desse cineminha, pude contar com um monte de irmãos mais velhos de faro cultural apurado que me despertaram, muito cedo, o amor pela arte plástica, a literatura e a canção popular de alto nível. Dado o contexto, foi mesmo muita sorte.
No início dos mil e setecentos, a música sinfônica européia contava com inumeráveis artesãos de imensa habilidade. Reza a lenda que os melhores entre os melhores pertenceram à família Stradivarius.
"Hoje em dia a palavra 'Estradivário' é também associada à excelência de qualidade, chamando-se o 'Estradivário' de qualquer área ao melhor do que nela há".
Quem diz é minha amiga a Wikipédia. Gostei. Parece algo entre o vário e o extraordinário.
Na juventude eu conheci uma banda que só tocava Raul Seixas e o nome dela era "Estado de Vários". Essa é muito boa!
Trezentos anos depois e com toda a tecnologia que tanto nos orgulha, ninguém é mais capaz de fazer violinos tão perfeitos como os desses sujeitos "extraordivários", algo que a ciência tenta ardentemente mas não consegue explicar.
Eu acho que consigo. Não é muito complicado. Trata-se apenas de todo um conjunto de circunstâncias favoráveis que não se repetem jamais outra vez, uma vez extintas.
Foi um conjunto de circunstâncias especiais desse tipo que produziu os violinos Stradivarius: a safra do madeiro da epícia de determinado recanto dos Alpes do início do século XVIII, uma genética familiar de artífices poderosos, o apogeu de um certo gênero musical, a formação de uma audiência ilustrada no assunto, magníficos anfiteatros e câmaras de concerto, gerações trabalhando no mesmo ateliê com os melhores instrumentos manuais que deram ao violino, em seu ápice, um máximo de excelência artesanal, enfim, algo que nenhum supercomputador acoplado a uma impressora em 3D será jamais capaz de reproduzir pois não se trata apenas das condições materiais do fazer.
Imponderáveis do fator humano: há coisas duras de entender para as autoproclamadas "ciências duras" (céus, quem lhes deu esse nome horrível?!).
Existem gerações de artistas que marcam uma época determinada de determinado lugar.
Exemplo: os havaianos descritos pela tripulação da esquadra de Capitão Cook dispunham, duzentos e cinquenta anos atrás, de um rol de compositores de cantigas de teor sexual incomparáveis. Para quem quiser ter uma ideia da sociedade e ambiente nativos que favoreceram o florescimento dessa forma de arte muito particular, favor consultar "Ilhas de História", de Marshal Sahlins, um ensaio de "ciência suave" que trata desta entre outras maravilhas com rigor temperado de estilo.
Mas não é preciso ir assim tão longe no tempo e no espaço.
O chamado "boom dos romancistas latino-americanos" aconteceu entre as décadas de 1960 e 70. Porque esse tempo, esse lugar? Não sei. Só sei que foi muito bom mas passou, acabou.
Estamos, no Brasil, assistindo a uma dessas "gerações de ouro": a dos compositores e cantores da chamada Música Popular Brasileira.
Nem todo mundo tem irmãos ilustrados, virtudes artísticas, a paciência e a concentração específicas que o exercício da erudição requer, mas, pensemos, um pouco de literatura de primeira nunca fez mal a ninguém e uma belíssima forma de colocar uma pitada de poesia refinada no fermento da cuca da molecada, sem dúvida, é através do cancioneiro popular, da música simples e profunda que tem fortes raízes na comunidade dos povos nativos e que muitas vezes é apropriada e recriada por um grupo de compositores de excelência que conta, para além da "velha guarda", com os recursos valiosos do patrimônio literário mundial e da tecnologia instrumental clássica e moderna, do violoncelo à guitarra.
Quando botavam os discos de Cartola, Caetano, Milton, Chico e Paulinho da Viola pra tocar na vitrola, meus irmãos estavam lançando, espontaneamente, sem muitas pretensões, as bases elevadas do meu gosto literário.
Teria sido muito mais difícil apreciar, logo de cara, Manoel Bandeira ou Carlos Drummond de Andrade, mas assim, a partir desse ótimo começo, com os Adonirans e os Martinhos da vida, aos dezoito aninhos eu já estava mais do que habilitado para dar um salto até a prateleira dos clássicos, afinal, um senso fino, uma vez desperto, sempre vai a procura de mais e mais.
É como aquela história de que uma droga leve pode ser a porta de entrada para outra mais pesada: o cérebro não se contenta mais com doses baixas e vai em busca de algo cada vez mais potente.
Essa geração preciosa de poetas compositores brasileiros começou a se consolidar a partir dos anos cinquenta mas foi a partir dos sessenta, enquanto eu crescia, que ela desabrochou a partir dos chamados "festivais da canção".
Viviam-se tempos estranhos em que os ditadores chamavam a si mesmos de "revolucionários". Sim, o Brasil não é para amadores. E eu ein? que sempre achei que o termo "revolução" era um simplismo próprio aos comunistas! Vivendo e aprendendo...
Acontece que os tais ditadores revolucionários não gostaram nada das letras inteligentes e contestatórias da moçada alçada à fama pelos festivais.
Assim, em conluio com os grandes meios de manipulação da época, deu-se fim a esses verdadeiros ninhos de "subversivos", quer dizer, aqueles que "subvertem a ordem". Claro, junto com o significante, impuseram também um significado negativo à palavra, porque ditadores, quaisquer ditadores, sempre supõem que a ordem, seja qual for a ordem, possui virtudes eternas e irretocáveis. São como aqueles cães mais testudos e burraldos: se na rua estão passando apenas bicicletas, latem para os carros; se estão passando só carros, latem para as bicicletas. O importante é sempre impor, aos gritos, "a" ordem.
Por isso não gostaram nada dos Novos Baianos que surgiram na praça. Na casa iluminada onde desabrocharam Gius, Elises e Vandrés, outros pássaros poderiam despertar para o mundo, o mal precisava ser capado pela raiz.
Àqueles pioneiros que já tinham batido asas, foi preciso cortá-las: censuras, pressões, prisões, lesões, exílios mais ou menos forçados.
Tempos depois, quando eu era adolescente e a dita dura revolução ainda vigorava, houve uma tímida tentativa de reviver os momentos áureos dos festivais da canção, mas já era tarde, eram outros tempos, outra televisão, a cena já estava dominada, ninguém mais quebrava violão no palco e o lançava furioso sobre platéias de bêbados ensandecidos, embora ainda acontecessem vaias maravilhosas tais como a que levou a pobre Lucinha Lins.
Outro dia eu fui surpreendido, num canal pago, com a exibição de vídeos antigos do "Programa do Chacrinha". A gente via aquilo e achava natural, banal, a mesma coisa todo fim de semana. Mas agora, com o olhar de três décadas no futuro, e comparando com o "Programa do Faustão", no ar há décadas e ainda em exibição, observo o quanto de improviso e nonsense era permitido pelas mídias, durante sua infância inocente.
Chacrinha e Faustão usam o mesmo expediente: dois babacas fingindo que são bobões comandam o circo. Grandes feiosos, estão sempre ornamentados, ao fundo, por um panteão de bailarinas coxudas, peitudas e bundudas, tipo mulherão objeto mesmo, sem meias medidas, só que no Chacrinha era explícito, escrachado, as câmeras davam zooms repentinos bem no meio das pererecas das meninas, na base do V do biquini cavadão.
No Faustão elas continuam objetos só que objetos "com classe". Não ficam mais expostas em pedestais como mercadorias à venda. Estão todas no mesmo nível baixo, apenas, mas agora são subliminares, ficam na sombra e só surgem em flashs. Se a câmera destaca alguma entre elas, será por poucos segundos, o tempo mínimo para uma pose idiota e blaublau, babai. Proibiram os tradicionais colans de malha atolados no rego, decotes até o umbigo, marcas de bico de peito que acusam ausências, olhares lânguidos, ritacadilaquianos, que sinalizam "vem, maldito, vem me pegar". Não. Ainda continuam bregas, só que bregas "chics". Quando não estão bailando a coreografia mais clichê desse mundo, param todas com um sorriso de boneca congelado no rosto, o peito arfante, as mãos na cintura e o pé direito suavemente cruzado à frente do esquerdo, porque perna aberta é coisa feia pra mocinha.
Depois de voltar ao passado passei a valorizar tanto o Chacrinha! Pensar que eu cheguei a pensar que essa merda era "a" merda! Como sou estúpido! Agora vejo, o programa era uma festa destrambelhada estrondosa, um circo popular de verdade! Quem ia para as arquibancadas era o mesmo povão da geral do Maracanã que hoje não passa nem na porta do Maracanã, onde aboliram a geral, uma multidão de doidinhas que botavam pra quebrar pra valer e sem controle, ululá! A margem para erros era infinita, como acontece... na vida. Chacrinha, de vez em quando, lançava sobre a manada superexcitada um abacaxi, um jato de água fria ou um saco de farinha que com pouco alguém estourava e daí a nuvem nutritiva se espalhava de alto a baixo, alastrando o frenesi.
Já os produtores do Faustão não querem ferir o pudor da família cristã nas tardes de domingo, mas também não podem deixar a vida dela ainda mais fria e tediosa do que já é de segunda a sábado. Então lá estão o eterno bataclã e também as cacetadas. Apenas, agora, elas são em vídeo, ou seja, ninguém mais se arrisca a tomar uma bomba de fubá bem no meio da testa e ao vivo, jamais! Quanto ao público, a produção seleciona, previamente, grupos regionais, entre muitos que se candidatam, que comparecem ao estúdio na hora marcada, em gênero, número e classe predeterminados, para formarem a platéia. A galeria é dividida entre torcidas uniformizadas: uma verde, outra rosa, outra mais, azul. Vermelho, melhor evitar. Os grupinhos são coesos e bem organizados, o máximo de balbúrdia que se-lhes-permitem é que gritem "êêêê" enquanto joguem as mãos para o alto quando o mestre falso boboca dá a senha que todos conhecem: "alô galera de Poços de Caldas, Minas Gerais!" ... "Êêêê!". "Vassouras, Rio de Janeiro"... "Êêêê!!"... "Pindamonhangaba"... "Êêêê!!" Toda semana a mesma porcaria porcaria, ou seja, porcaria chata. Eu adoro certas porcarias, mas são porcarias vivas, das boas. Faustão é tipo uma droga sintética, e malhada. Droga boa é o Chacrinha, agora sei, sujeira limpa, do chão, natural.
Mas não se enganem, dei toda essa volta para comparar também os antigos festivais da canção com os modernos programas "franchising" tipo "The Voice", eis pra onde queria apontar, de fato, a agulha de meu sarcasmo.
E é nesse ponto que me pergunto: porque a velha mídia não faz mais festival da canção? Ora, muito simples, porque a ordem fechou-se, ninguém se arrisca mais a um mínimo gesto improvisado. E, sobretudo, os barões da TV aberta vão correr o risco de produzir uma nova geração de poderosos poetas superversivos?
Poderiam promover um festival falso, com o mesmo tipo de intérpretes perfeitinhos de canções já prontas, no mais batidas, que vemos nos "The Voice". Vozes suntuosas, afetadas, trejeitosas que cantam letras espertas que apelam para o virtuosismo como uma forma espetacular de escamotear a vida pulsante, as emoções que brotam da plena harmonia entre o canto e a poesia.
"Quando seu moço nasceu meu rebento inda não era tempo dele rebentar. Já foi nascendo com cara de fome eu nem tinha nem nome pra lhe dar..."
Mas o buraco é mais embaixo pois nem festivais de "música esperta" arriscam fazer, os malandros. Pensando bem, talvez nem sejam mais capazes, pois, do compositor ao arranjador, do produtor ao apresentador, todos estão mergulhados no esquemão terrível armado pela baixa modernidade, uma repressão maciça e generalizada de tudo o que é profundamente emotivo, o que está produzindo uma cultura "profundofóbica" ou "sentimentofóbica".
Outro dia uma candidata a cantar no The Voice da Globo tomou um tombo e caiu aos pés de Carlinhos Brown, que lançou-se para socorre-la, como convém a seu papel de velho bom moço, maluco para inglês ver. Aposto um milhão que esse "deslize" foi combinado! Não há espaço para improviso de uma vírgula nesses programas, embora exista um planejamento rígido para que tudo pareça o tempo todo natural, o que acaba agravando ainda mais o clima fake que se revela nos menores detalhes. Nada mais ineficaz do que fingir naturalidade, é ridículo. Claro, a galera de robôs vai ao delírio, no sofá, em casa, uns espelhos dos outros, a demanda produz a oferta e a oferta produz a demanda em níveis cada vez mais baixos, num ciclo infernal de rasura e banalidade.
Iza, ah Iza, tão negritudemente falsificada! Teló, ah Teló, não consegue não sorrir, ôo dó! Lulu, ah Lulu, cãozinho de madame, que um dia me fez acreditar que "nada do que foi será de novo do jeito já foi um dia".
Mudamos para nos tornarmos esse lixo de luxo?
Isso sim é "subversão", uma versão da velha ordem ainda mais apequenada.
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