ESTUDANDO A FARRA



Há muitas décadas Ouro Preto tem cursos de graduação superior freqüentados por uma malta de rapazes e moças que se hospedam, a maior parte, em casarões centenários transformados nas famosas “repúblicas de estudantes”, cada uma seu nome, seu emblema, seus ritos, seus retratos de antigos membros honorários, sua tradição de estudo, farra e “pegação”. Há poucos dias meu sobrinho mais velho, o querido Ems, esteve lá e me contou depois que isto está mudando desde que um novo prefeito, evangélico, proibiu o carnaval de rua na cidade, anda botando freio na "baderna" estudantil e assim estaria empurrando as repúblicas e suas festas extravagantes para os arredores da universidade, longe do centro histórico. Será o fim de uma tradição? 

Muitos desses jovens, depois de anos de caos social, desleixo, embriaguez e excessos de todo tipo, pagaram caro, alguns com a morte. Outros, sobreviventes, dirão que valeu a pena. Quem poderá contestá-los?

Hoje assisto ao jornal matinal da Rede Globo e exibem uma matéria sobre o tema “violência policial”. Mostram, com imagens de vídeo feitas por celulares, a Polícia Militar do Estado de São Paulo descendo o porrete e lançando bombas de gás para dispersar a molecada que, coisa cada vez mais comum, tinha fechado uma rua de trânsito intenso da periferia para se impor, imperar sobre a cidade, desafiar autoridade, beber, fumar, cheirar, pirar ouvindo o som de arrebentar do “pancadão”, entre outras diversões de alta octanagem. 

O motivo da comemoração seria a festa de aniversário da fundação do bairro, mas poderia ser nenhum mesmo, o resultado de uma simples convocação geral relâmpago pelas redes sociais. 

Uma mulher que não quer mostrar a cara com medo de represálias diz que durante muito tempo as famílias da região, pais, avós, adolescentes, crianças, se reuniram em grandes eventos de rua na data do aniversário, mas que havia autorização da prefeitura e toda a organização que costuma reger esse tipo de festividade. Porém, conta, de uns tempos para cá, com a dominância da rapaziada, a própria comunidade estaria pedindo ao poder público que impeça a realização da festa em vista da crescente barbárie a que ela dá motivo. 

Não há dúvidas de que essa juventude adoidada está abandonada à própria sorte e que seria preciso um longo e duradouro investimento de estrutura e formação educacional de qualidade para direcioná-la da baixa em direção à alta modernidade e seus preciosos tesouros tecnológicos e culturais. 

Contudo, olha só a coincidência, passo o canal para a Record e o jornal da manhã da principal concorrente da Globo está tratando de assunto muito semelhante, só que agora em Belo Horizonte e em bairro de classe média. 

Os vídeos de celular novamente flagram uma juventude em ebulição entupindo a rua, ouvindo som mecânico no último volume, dificultando o trânsito de quem mora na região, enfim, se assenhorando do espaço público do mesmo modo que a moçada da periferia de Sampa, só que a reclamação é maior pois parece que essa Babel ocorre de maneira periódica já que reúne os estudantes de uma faculdade próxima que estão, como seus pares de Ouro Preto, rotineiramente em estado de exaltação e desvario. Outra diferença é que as imagens de BH não registram nenhuma ação da PM, ordeira ou violenta que seja. Tudo indica, se acreditamos na reportagem, que aqui os donos da rua agem na mais completa liberdade. 

Conheço a rotina desses modernos estudantes, nossos futuros professores, médicos, dentistas, engenheiros, advogados, promotores e juízes de direito. Ainda hoje eu estava vindo para o trabalho, que se imagine, por volta das nove e meia da manhã, passando por região central de São Paulo que, faz alguns anos, concentra um grande número de faculdades de diversas áreas. 

Em certa rua de meu trajeto de pedestre há uma quadra de muitos botecos e, quem quiser ver, basta passar por lá um dia útil qualquer. A cena era menos comum até cerca de um ano atrás, mas está acontecendo cada vez mais, nessa como em outras esquinas do bairro, nas proximidades das faculdades. Aqui a maioria é de estudantes de classe média e estão bebendo cerveja, fumando e conversando alto, excitados, sei lá, desde as oito horas. Detalhe, hoje é terça-feira. Isso é de botar as repúblicas de Ouro Preto no chinelo, vamos falar a verdade! 

Dominam a calçada e se tentamos passar por eles, em meio à nuvem de fumaça, se afastam numa tremenda má vontade, sinal claro de que estão muito cientes de seu papel dominador. Mães com seus carrinhos de bebê, pessoas idosas, trabalhadores levando cargas, todos, como bois resignados, desviam, evitando confusão, e vão pela rua, em meio ao trânsito, também nada civilizado, da metrópole alucinada.  Uma vez fiz um teste e forcei a passagem no meio dos folgados. Furioso, um rapaz gritou dentro de meu ouvido me chamando de?... "folgado".

Alguns desses jovens parecem bastante lesados assim logo ao raiar do dia, com cara sonsa sofrida, encostados um pouco mais adiante, no muro da escola, fumando sem parar, desoladamente. Dá dó, às vezes. Não dá quando eles e elas vêm andando em grupo na direção do bar e como um bloco, exigem que a gente saia da reta para que passem. Ou somos atropelados ou espremidos contra a parede, pois não movem um ombro para se desvencilharem. 

Ainda estou avaliando o quanto entra na postura desses moleques de alienação física, ressaca de droga ou de sono, cansaço precoce da vida, o quanto entra de orgulho besta, petulância burguesa juvenil. O fato é que a noção do outro dessa malandragem está ficando ínfima, com consequências desastrosas. Esses tipos total-sem-noção são os futuros líderes autoritários da área médica, administrativa, política, jurídico-policial, basta que se formem e se encaixem num nicho de poderzinho miserável qualquer no âmbito do grande laboratório ou hospital de classe alta, da corporação transnacional, da fazenda agro-industrial, do grande escritório de advocacia, e por aí vai...

Nessas horas, em geral contenho meus ímpetos, procuro não abrir espaço aos trancos e barrancos, não atropelo ninguém, aliás, ao contrário, simplesmente me calo e passo com passos de tai chi chuan, lutando com alma, como um fantasma entre fantasmas. Confesso, um sentimento de vingancinha me move nessa minha atitude guerreira, suave apenas em aparência. De algum modo, me sinto superior a eles em meu sofrimento, sabendo que a hora deles virá, que a petulância, qualquer petulância, mais dia, menos dia, será posta em cheque pelo peso da derrota, da perda afetiva, da doença ou da morte. 

Não serve de remédio para a amargura e a desolação que se debatem no meu peito, claro, tampouco altera em nada um sistema de coisas deplorável, a natureza, a sociedade não funcionam como um relógio, tudo é muito mais.

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