MUNDO ANIMAL




Era uma ilustração quadrada desenhada e pintada no computador e impresso desse modo perfeito, chapado, comportado, que só pode ser produto de uma máquina humana. Figurava dois grandes tucanos de tons de tinta do tipo brasil pátria tropical.

Com a longa convivência, acabei por ter alguma pena deles e da pena nasceu até um fiapo de simpatia até que, afinal, inspirado por novos planos, desapiedei, desmontei tudo, matando as pobres aves. 

O objeto de pseudoarte tinha estado no sítio, na roça, tomando os ares e os espíritos da floresta que o cercava durante doze anos muito bem vividos. Nunca o preguei na parede. Andou sempre proscrito, daqui pra lá, sobre o gaveteiro ou o armário de livros (seu lugar mais alto, um privilégio que nem achava que merecesse), sendo que depois foi pro canto da parede, pro chão de cimento, onde parecia mais apropriado, seu lugar frio inferior. 

Há tempos planejava arrancar, da placa da moldura, o papel onde estava impresso o desenho mecânico desse animal esplêndido, escolhido, décadas atrás, como símbolo de certo partido político brasileiro que nasceu sob a bandeira da então chamada social-democracia mas que, pouco a pouco, foi decaindo em seus já muito prudentes e limitados ideais de estado de bem estar e igualitarismo até ser sufocado por torpezas enormes. Por fim me decidi e arranquei o papel, com gosto, fronteirando o ódio. 

Todo dia, semana após semana, andei analisando a placa de suporte do quadro então despida das figuras banais. Cheguei a pensar em colocar no espaço vago algum arranjo de antigas e novas fotos minhas e de meus companheiros de jornada.

Adiava, contudo, esse e outros projetos para o vazio, o abismo que abri, criei sob meus pés, ao destruir o impresso bobalhão do par de tucanos.

Até que, certa data, tomei ímpeto, decidi começar. 

Lavei o vidro com bucha e detergente, raspei com espátula restos de adesivo, lixei a base e a moldura e depois..., bem, depois coloquei tudo de novo para descansar...

Tive que esperar muitos dias para o próximo passo, a vida não nos pertence, todos sabem.

Um feriado desses, deu a brecha.

No caso eu estava fazendo o almoço do domingo, buscando e ouvindo MPB num canal do Youtube e tomando aquela cervejinha do trabalhador. Depois que terminei o tempero dos bifes e a lavação da salada, deixei o arroz integral na fervura e fui à oficina dar uma olhada no que podia ser.

Lá estava o vácuo me chamando, me atraindo, era a hora. 

Mas existe essa roupa pra por pra lavar na máquina e as presilhas de metal do varal se arrebentaram, roupas no chão, caixas arrancadas à estante, quando o fio recocheteou, um desastre, e foi preciso sacar do saco a coragem, obra urgente, equipar a furadeira, sacar parafusos do caos, ligar a máquina na tomada e meter buraco na parede, erguer de novo o barraco, que bosta!, adeus concentração!, sonho meu, sonho meu, adeus! adeus!

O que dá mexer com maquinário enquanto se bebe cerveja? O burro deixa a moldura no alto ali ao lado; o tijolo resiste bravamente à broca; é preciso reforçar o tranco; num gesto em falso do cotovelo, zaz!!, a moldura vai ao chão, com todo estardalhaço e o vidro fino se parte em trinta pedaços que vou precisar, Santo Deus!, quebrar em trezentos outros, menores, de modo a embalar com muito cuidado para ir com segurança pro lixo, fora os caquinhos que ficaram para catar pelos cantos com a vassoura, enfrentando o desalento.

Depois dessa desilusão é que o projeto estagnou de vez. Foi preciso esperar pelo menos um mês enquanto o trauma passava.

Até que um dia resolvi dar uma pequena chance ao criador e à criatura. “Coleção Primeiros Passos”.

A princípio tinha pensado em comprar papel aquarela tamanho grande para ocupar o espaço do antigo impresso mas com a quebra do vidro o destino me deu uma pista para fazer novo uso de materiais que possuo em minha oficina, poupando gastos. Notei que a placa de compensado dos fundos do quadro era porosa e que poderia absorver pós de origem mineral dissolvidos na forma de pastas como as que uso de hábito para colorir certas peças de cerâmica que faço. Uma técnica me inspirou a outra, certo, mas isso não teria acontecido se o vidro não tivesse quebrado, colocando meus sentidos a um diálogo mais direto com a base exposta.

Fui às gavetas, averiguei os instrumentos e materiais disponíveis e me pus a remexer, sem temer mas sem querer também demais (ainda não estava muito confiante). 

Guardava há muito uns vidrinhos com pigmentos de cores vivas e garrafas pet cheias de barros de diversos tons de terra que, ao longo de anos, venho comprando na mão das oleiras do sertão das Minas profundas. Tinha também dois ou três tubos de cola tenaz com datas de validade mais ou menos vencidas. Tudo sem muita regra bem misturado, compus a pasta base em diversas festivas tonalidades boas o bastante para meus humildes propósitos.

Camada sobre camada que ia secando, entre os afazeres, com prazer na paciência, finalmente, fui recobrindo a placa de madeira em áreas delimitadas, quadradas, retangulares, com cinzas azulados e roxos foscos suaves que resultaram bonitos demais!

A base do novo quadro assim repousou por mais algumas longas jornadas em que o trabalhador se desgastava mundo afora a garantir cruamente a própria sobrevivência.

Ai, as obrigações, inimigas do tempo certo de cada coisa! 

Aguardava, quem sabe, alguma luz terrena, senão dos céus, para inspirar os desenhos do acabamento em sua alma de velho menino. Todo mundo sabe, os céus não inspiram ninguém, seria pedir demais. Às vezes, se formos bons velhos meninos, eles podem soprar alguma dica, mas ela vai ser sutil como uma brisa morna vespertina, a exigir que sejamos muito, mas muito atentos para captá-la, caso contrário, a deixamos passar torpecidas como um lance a mais do mero acaso.

Por fim, brotou. Começou pela formiga-raiz vermelho escuro intenso do cantinho direito inferior. Depois, uma a uma, tempinhos preciosos roubados à rotina nossa de cada dia, foram brotando as outras formas, volutas de vento e água que formam o caldo da vida: acima aranha galho, abaixo lagarto grama, no centro leopardo nuvens de tempestade boca de jacaré. 

Título tem que ser resumo: “Mundo Animal”, inspirado na antiga série de documentários. 

Agora só falta assinar.

Comentários

Postar um comentário

Postagens mais visitadas