SAUDADES DE BRINCAR DE BRIGA
Quando eu era criança na cidadezinha onde nasci e me criei, admirem-se, íamos à pé pro cinema ali pertinho de casa.
Sim, naquela cidade pequena do interior de Minas havia um cinema e dos bons, nos idos de 1970 e pouco, herança de velhos tempos, pré-televisionais. Pouco anos depois virou fábrica de tecidos e hoje não sei mais, talvez um templo qualquer das mercancias. A única foto, precária, que achei dele, abaixo, não tem data mas deve ser bem antiga. Parecia, então, decadente, abandonado.
Minha consciência estética se desenvolveu nesse momento de transição entre o sonho projetado na telona, do ritual coletivo de ir ao cinema, e o sonho moderno, narcísico, solipsista, da TV que penetra intra-muros.
Dia bom mesmo era quando projetavam o que a molecada chamava de “filme de luta” ou “filme de briga”.
Nessa época, nenhum de nós sabia porcaria nenhuma da diferença entre japonês e chinês e nem suspeitava o que vinha a ser um coreano, o importante era que os capetas de olhos puxados eram feras demais na arte de dar porrada com método e classe. Adorávamos esses gajos à loucura!
E olhe que as tramas, cenários, coreografias e instrumentos de quarenta anos atrás soam quase ridículos se os vemos à luz dos filmes do mesmo gênero produzidos hoje em dia no oriente e no ocidente, com astros como Jackie Chan, Jet Li, Donnie Yen, Tony Jaa e outros que saltam de telhados ou sobre muralhas levitando como fantasmas, especialistas da fúria calculada, com seu arsenal magnífico de armas artesanais: lanças, espadas, adagas, flechas, estrelas, agulhas, facas e guilhotinas voadoras, leques decepantes, porretes, chacos, tacos e bastões ornamentados, porque o guerreiro em sua arte, ademais de sangrento e mortal, tem que ser belo em tudo, com penteados, maquiagens, vestes e paramentos indefectíveis.
Pois naqueles tempos ingênuos, de cinema de cidade pequena e televisão em preto e branco, precisávamos de muito menos, a troca de uns tantos murros, cotoveladas, rasteiras e pontapés entre malfeitores esfarrapados nos bastavam pois, para quem sabe sonhar, bobagem é maravilha e maravilha é bobagem!
Saíamos das sessões tomados pela certeza incontrolável de que poderíamos enfrentar qualquer um, fosse o que fosse, guerreiro, espírito do mau ou monstro. Era por o pé na rua e começava o festival de tapas, socos e chutes simulados, entre nós, ou com as árvores, os postes, o busto do falecido doutor ex-prefeito na praça central, tudo, claro, com o devido acompanhamento vocal: pá! tumtumtum! quiááá!
Saíamos das sessões tomados pela certeza incontrolável de que poderíamos enfrentar qualquer um, fosse o que fosse, guerreiro, espírito do mau ou monstro. Era por o pé na rua e começava o festival de tapas, socos e chutes simulados, entre nós, ou com as árvores, os postes, o busto do falecido doutor ex-prefeito na praça central, tudo, claro, com o devido acompanhamento vocal: pá! tumtumtum! quiááá!
O bom de ser criança é isso, acreditar em grandes poderes inatos, pensar que é possível assimilar por osmose, num passe de mágica, no tempo da projeção de um filme, uma arte que exige anos, décadas de prática, uma vida inteira de rotina, mesmice, repetição!
Agora lá vou eu, cinquentenário, todas as sagradas terças e quintas feiras, das oito às nove, recém chegado atrasado na academia, para o treino do Tai Chi Chuan com mestre Ye, o simples, vinte anos mais jovem, mandarim exigente paciente, sempre às voltas com minha tagarelice, minha memória curta, minha tendência à quebra de ritmo, estagnado aqui, precipitado acolá, minha concentração dispersa, meus desânimos e vacilações.
Hábito, constância, postura ereta, procura do equilíbrio e da precisão na lentidão, sessões semanais de tortura, dobrar a vontade veloz, quedar posto, estátua, um minuto um minuto, encarando o vazio sem reticências, nada mais, nada menos, vergar-se em infinitos alongamentos, dobrar-se ao chão para colher a energia da terra e em seguida esticar-se para o alto até lança-la aos céus, torcer o torso, abrir o dorso, assentar-se no ar, punhos abertos, punhos fechados, cultivando o chi, sem quebrar um braço sequer, sem vazar um único olho, herói pacífico, sem derrota, sem vitória, herói de si mesmo e olhe lá, herói sem platéia, herói zé ninguém.
Gozemos todos, enquanto é tempo, o poder sem limites da infância, a vida "de verdade" é toda montanha, barreira, impasse.
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