COTIDIANO DISTÓPICO: VELOZES E FURIOSOS

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As grandes cidades brasileiras, lugar onde vivi desde meus nove anos de idade, sempre foram uma selva de pedra, sobretudo para os mais pobres, mas ninguém, de classe social nenhuma, deixa de ser afetado pela distopia, por mais que alguns possam acreditar que não são. 


Sinto, porém, que nos últimos tempos, a coisa tem piorado porque gente de todas as classes sociais está ficando mais e mais competitiva e ambiciosa, mais individualista, egocentrada e, no limite, sociopata, ou seja, de todo insensível aos limites do outro. 



Há uma travessia em faixa de pedestre aqui perto de meu local de trabalho que tenho que cruzar todos os dias. Fica pouco abaixo de onde fiz o registro fotográfico da desventura de Bobozinho Homeless, de que tratei na última postagem, uns devem se lembrar. O lugar é meio isolado pois o motorista vem subindo a alça a partir da grande avenida que corre no fundo do vale e a via aí é livre de cruzamentos e do trânsito maior de gente andando a pé até esse ponto onde está a travessia. 

Sendo assim, quando vamos passar na faixa, costumamos deparar com motoristas super excitados que escaparam dos engarrafamentos da pista principal e estão sedentos para atingir o mais rápido possível o centro da cidade, no alto. Parecem andar o tempo todo alucinados, como se fossem tirar o pai da forca, mas nenhum deles tem o pai na forca, motivos palpáveis para agirem com tanta pressa e imprudência assim, na verdade, poucos possuem, em geral se trata mesmo só de ansiedades socialmente engendradas, ódios mal resolvidos, enfim, loucura ruim. Muitas viaturas das forças públicas, com paramédicos, bombeiros ou policiais, fazem do mesmo jeito: na sede de chegarem a tempo na sagrada missão de salvar vidas, parecem foras da lei foras de si e andam sempre por um meio fio do massacre de passantes incautos, pessoas ou animais, isto é, a própria esquizô no comando. 

Se você que me lerescuta, pobre mortal como eu, se sentir ousado o bastante, tente pular o rubicão num desses momentos fatais e arrisque fazer um gesto de mão sinalizando para o veloz e furioso da vez para que fique mais atento e diminua a velocidade, sabendo que a muita distância dá para perceber, para quem quer perceber, que um ser vivo está pisando o solo sobre listas brancas que indicam, nos termos do código de trânsito, a preferência do pedestre. 


Nessa hora, alguns poucos alienados de boa vontade vão usar os freios, mais ou menos em cima de mim ou de você, daí vai esperar você ou eu superar a última lista além do limite do carro para, avante, acelerar, bufando como um búfalo. Não adianta dizer cauma rapá, dêêx' u cachurrin passá!, afinal, são os mais educados dentre os bárbaros mas ainda são bárbaros, desconhecem o valor do apreço, do cuidado, da gentileza nas relações humanas. 

Pobres almas, gostaria de orar por elas, mas não creio que adiantaria muita coisa e também minha relativa sanidade não chega a ser santidade, elas despertam em mim os piores instintos. Desse modo, dia após dia, tenho que lutar para não descer tão baixo quanto meus ofensores, mas está ficando difícil já que vivemos, todos, no mesmo ambiente tóxico.  

O mal estar da civilização que sentem vem do fato de que a legislação brasileira atual, no caso, não permite que eles usem armas de fogo, mas por isso não, possuem uma excelente, ora, seu automóvel biocombustível, uma armadura bomba de dois mil quilos potente como duzentos cavalos!

Diante de tais imperativos nós, meros andarilhos, não somos nada além de pele, carne e osso. 


Há aqueles que reagem a nosso ousado gesto pacificador sem pisar no freio, simplesmente reduzem um pouco a velocidade mirando o buraco que vai se formando a nossas costas na medida em que caminhamos e assim que ele se abre... vapt!, passam por trás raspando como salamalandras voadoras. Não adianta também gritar figlio di una putana!, no fi já se foram, num só segundo já estão longe demais, indiferentes como 777s em altitude de cruzeiro, muito acima, imunes a qualquer forma de afeto entre pares iguais. 

Além desses existem, claro, uns tantos que vão demonstrar, de bem longe, que não estão dispostos a ralentar a ponto de conseguir parar, é a velha tática terrorista do tipo sai seu merda enquanto é tempo

Nos mais doentes, a atitude proativa pode facilmente degenerar num atropelamento não apenas ideal mas de fato, o que, digamos sem meias palavras, caracteriza crime doloso, assassinato ou lesão corporal com agravante de premeditação. Difícil vai ser provar tudo isso, o sinistro acontece com demasiada freqüência e em circunstâncias suficientemente dúbias para ser considerado, digamos, fora da curva por delegados, promotores e juízes ideologizados até a medula. 

Tudo considerado, os meliantes de classe podem agir sem peias. Pode ser um médico jovem que almeja fortuna, mecânico de gente que não entende de saúde propriamente mas de consertos com s: remendos, rejuntas, reparos. Seu tempo é contado em relógio de ouro e seus impulsos nunca param. Pode ser a madame que tem um importante encontro amoroso de negócios, o dia se esvai e ela, coitada, ainda não conseguiu passar na manicure. Pode ser o hipster barbanera impecável que de forma alguma admite fazer uso limitado da potência de seu boytoy, o resto é detalhe. E pode ser algum chefão da máfia de todas as máfias, a máfia do dinheiro, vidros mais escuros do que a regra permite e que permitem ver desde dentro sem ser visto desde fora. Nesse caso, melhor esperar na calçada antes de tocar o sapato no asfalto, mesmo se a máquina obscura vem vindo devagar, em aparente calma, veja, pense, pare, questão de respeito ao poder maior da violência simbólica.

Comentários

  1. 👏👏👏a situação que vc narrou,infelizmente, n é um "privilégio" da sua cidade. Em BH acontece o mesmo e,acredite,na minha cidade natal tbm (uma cidadezinha com pouco mais de 8mil habitantes urbanos,salvo engano).A gentileza urbana parece tão intangível nas grandes capitais,a agressividade no trânsito parece ter se tornado uma regra. É lamentável.

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