VISÕES VERBOLACANIANAS: LER É VERESCUTAR

OBS: PARA QUEM ACESSAR O ÁUDIO POR CELULAR, RECOMENDAMOS CLICAR EM "OUVIR NO NAVEGADOR" POIS A OPÇÃO PERMITE OUVIR A NARRAÇÃO E AO MESMO TEMPO LER O TEXTO.



                              


A luz é para todos, as escuridões é que são apartadas e diversas.
                                                               
                                                        João Guimarães Rosa





Ler é verescutar e escutar é bem diferente de ouvir. 

Alguém pode simplesmente ouvir uma canção, por exemplo, da MPB, maravilhosa, como las hay às tantas, divagando em mil pensamentos enquanto lava as louças. Já é fazer demais, eu acho, considerando que existe gente que não se presta nem a isso, e olhe que tudo hoje está apenas e tão somente a um mouse, um rato de distância! 

Mas o melhor é se atentar para a parola, a palavra, o sentido estrito terrestre das letras e também os extras e coliga-los com o fluido emotivo musical. Então a transmissão estará límpida e completa: sem rasuras, sem ranhuras, sem chiados. 

Um belíssimo livro de contos como o do link acima, Primeiras Histórias, de Guima, o imortal, merece ser lerescutado com a atitude de alma a mais compenetrante possível, caso contrário, ó céus!, que tristeza!, que desperdício! 

Passeando meu olhar que escuta histórias nas dobras do centrão velho de São Paulo e sua periferia mais imediata, acabo me envolvendo em cenários verdadeiramente dantescos.

                                 

Há meses o boneco da foto abaixo, a quem apelidei de Bobozinho Homeless, está morto, assassinado, todo envolto em rolos de arame farpado, desses cravados de punhais lancinantes, que ornam os muros das prisões do estado e outros também das privadas, uns apontando para os de dentro, outros para os de fora. 

Em linguagem jurídica, são os chamados ofendículos

O drama se desenrola de escanteio, a uns cinco metros acima da calçada, sobre uma marquise suja, arruinada por infiltrações. O cadáver de materiais sintéticos está ali nessa situação há meses e encontra-se invicivilizado: os dias passam, ninguém se dá conta dele, ninguém se enternece, ninguém recolhe aquele que um dia foi brinquedo, coisa humanizada, a menina dos olhos da menina que protegeu do frio seu bem do coração num casaco fato a mano com rejeitos de carpete.


Na próxima imagem vemos que alguém, ao que parece, uma mulher, contrabandeou um carrinho de supermercado e o tornou multiuso: agora ele é meio de transporte, dispensa de mantimentos e armário de roupas e utensílios, além de servir de biombo, garantia pouca de intimidade. Já o cão é do ramo da intimidação. A cama, a cozinha e a sala de jantar se dão mesmo no frio duro cinza sujo do chão. 


Há quem tenha ainda menos sorte, quem mal seja capaz de prover a si mesmo tão solamente de calor vital.



Orações, as mais sinceras, serão suficientes para salvar, ainda em vida, o corpo da alma do pobre rapaz?


O cogumelo alucinógeno liberou as forças do sub-mundo preto e branco e de cócoras a mulher se desocupa de renaturalizar os andrajos do tecido industrial.



A mirada dos seresletras retratados abaixo veio do passado para compor a cena atualíssima? Prova do improvável?



O olhar oriental do O verde azulado do grafite paira sobranceiro, indiferente ao que se passa de injusto justo debaixo do próprio queixo. A orelha é pequena, embora saia ressaltada do ângulo de algo semelhante a um T. Aparentemente o vizinho ao lado é um U na forma de língua, uma língua bem grande, que contrasta com os lábios finos e lacrados do O. 

TOUB? Tobias? Tobias Yang?


O  A do YANG mira claramente o velho senhor que dorme, o que vocês acham, estou viajando? A manhã vai avançada. Costuramos significados. Tudo indica que a boca do ET-Formiga sorri mas os olhos, em contraste, estão esbugalhados, espantados, talvez. Difícil traduzir em linguagem humana o sentido das expressões de um Extra Terrestre, então que prefiro pensar que ele está mesmo assombrado diante do quadro de miséria e abandono com que se depara ao pousar no planeta muito estranho.


No dia seguinte uma orgia de dejetos de fábrica ainda testemunha a presença ausente no lugar, nem é preciso escavar.



Há lixos e lixos e há pessoas e pessoas, tanto que existem as que, embora desvalidas de todo, conseguem ser mais ordeiras e mais sensíveis aos apelos da arte do que outras "bem nascidas" entre aspas.















Por falar em ler ausências, percebam esse nicho alto exposto pelas eras. Ele abriga um mecanismo jurássico que um dia já foi capaz de abrir automaticamente o portão que a seus pés não jaz mais.















Não, não flagramos a próxima cena numa favela ou gueto qualquer das periferias, não se trata de um serviço especial dos cariocas da Gatonet, estamos em São Paulo, onde recurso é que não falta, e a via é central, urbanizada faz pra mais de século. Não, senhoras e senhores, esse rolo todo se constitui no Brasil oficial mesmo: a eterna ditadura gambiarra, pátria do permanentemente provisório! 



A companhia concessionária privada que usa e abusa dos recursos públicos estaria mais ocupada em auferir lucros e distribuir dividendos aos mais distantes acionistas? Pode ser. Talvez. Quem sabe. Quem sou eu pra dizer, né mesmo?

À direita do poste reclinado notamos de novo a presença macabra dos tais ofendículos responsáveis pela morte prematura de nosso querido Bobozinho Homeless



Cuidado com a preferência ao girar na rotatória, o país dá sinais de que está preso por um fio. 



Essa família reciclável vive em liberdade, mas presa ao veículo. O pai se ausentou por uns minutos e deixou os filhos sozinhos e acordados.

















Outro piralata, artista visual e poeta, munido apenas de papel A4, caneta, lápis de cor e cola tenaz, expressa assim sua angústia existencial dialética:


VIDA/2001

A vida é uma criação divina
E a morte uma consequência.
O homem vem à vida.
A morte o leva para o desconhecido.
Mas o desconhecido é obscuro.
Porém, uma realidade.
Que qualquer homem vai ter que enfrentar.
Como a vida.

Não sei se repararam, estou fazendo crescer para poder repartir os cronicontos de meu bolog para as massas telempáticas, ampliando pouco a pouco o número de cartas e o universo de meus destinatários virtuais. 

Pena que até o momento poucos visitantes dessas páginas tenham feito uso da soberba ferramenta, surgida muito recentemente na história da escrita e da literatura, que possibilita o debate a longas distâncias entre emissor e emissários no campo dos comentários.

Por enquanto, conto apenas com a opinião impressa de alguns de meus melhores amigos e amigas, a qual, devo confessar, não me vale tanto como a dos estranhos pois os mais chegados tendem a ser partidários, talvez simpáticos demais à pessoa do autor e, portanto, não estão em posição de avaliar o texto com o mínimo de isenção necessário. 

Quer dizer, minto: ontem, por coincidência, um tal Matheus de não sei quê curtiu áudio meu que está no soundcloud, uma pequena mas saborosa vitória.

Tudo bem, há que se dar um desconto considerando que eu e esses meus velhos companheiros de viagem somos de um passado tão sem controle remoto que a TV tubular transmitia para nós, unilateralmente, conteúdos em tons de cinza, preto e branco e era preciso fazer o enorme sacrifício de levantar do sofá e girar uma manivela que havia na lateral do aparelho para mudar o canal da Globo para a Tupi e da Tupi para a Globo, dá pr' imaginar?!

Nesse ponto, devo confessar, às vezes tenho a impressão de que segui adiante mas que meus contemporâneos ficaram parados no tempo, ainda possuem uma mentalidade de décadas atrás, afinal, a maioria deles nasceu, como eu, muito antes do advento da web, dos smartphones e de outras maravilhas tecnológicas que, em tese, vieram para facilitar as comunicações humanas. 

Por tempos eu pensei como eles, minha mente sendo o produto de uma era em que periodistas, cronistas, romancistas pareciam lobos da estepe, publicavam em pranchas de papel monolíticas, onde só cabiam letras, gráficos, desenhos e diapositivos estáticos. Além disso, nesses antigamentes, autor e leitores estavam separados um dos outros quase em absoluto no tempo e no espaço, uma lástima!

Hoje, tudo isso mudou, aleluia, rompeu-se esse destino pobre unidirecional! 

Ou rompeu-se potencialmente somente, quem sabe. 

Seja como for, pensem bem: na atualidade, eu posso escrever e reescrever meus trabalhos no campo plástico da tela do computador e lança-los ao espaço sem limites da rede mundial, de onde também posso buscar novos aportes a toda hora, óia só que beleza! Um mero blogueiro pangaré como myself posso até não contar com muitas visualizações mas possuo o incrível poder de fazer correções no post já publicado quando for necessário e também a meu bel prazer, posso acrescentar novas ideias, novos pontos de vista, numa pauta ilimitada, posso indicar links, pontes para outras fontes, entradas para teses inteiras que já não mofam nas prateleiras, estradas imensas, com vai e vem incessante em pistas duplas repletas de veículos cada dia mais potentes transitando via aberta dia e noite e noite e dia para escritos, pinturas, gravações de voz, tomadas de filme e fotografias, do próprio artista ou de terceiros que se ligam a quartos e assim por diante, visto porque a coisa é chamada de rede. Se tudo isso não bastasse, posso retirar, substituir, relocar imagens ilustrativas do texto ao sabor das circunstâncias, por mais valia de contribuições alheias ou quando não por meus caprichos próprios, estamos no reino do vale tudo, se caíram berlinwalls, um dia wallstreets fatalmente também tombarão, pois se existe algo certo nesse mundo incerto de Deus é o fim de todas as coisas, lei do tempo, lei da natureza, nada é para sempre, ninguém é intocável, tudo pode, tudo deve e tudo tem que mudar 

Revisitemos, por exemplo, o destino da figura de mulher que estudamos na postagem Vikingos e Artistas Plásticos de Rua, de doze de agosto do ano passado

Quando eu a conheci, ela estava linda e radiante assim, concentrada, serenamente entregue, todos devem se lembrar.

                        

Já vimos que os violadores de arte miram especialmente o gênero feminino e de preferência o campo do olhar. Não é preciso ser um grande psicanalista para interpretar o dano como uma tentativa de impedir que as mulheres vejam, leiam, compreendam o mundo, o outro, os homens. O intruso da vez estava bem disposto, trouxe de casa duas tonalidades prontas: além de cegar em preto, queria calar em vermelho sangue. Trata-se, com toda evidência, de ofensa grave, premeditada. E pelo jeito, a exemplo de Adolf Hitler, que foi um pintor muito correto e muito medíocre, esse também se considera um artista perfeito.

                              

O que veio a seguir era previsível. Uma vez a obra maculada, dá espaço a um verdadeiro depósito de basura onde impera a feiura e o desencanto.

                        

Quem quer que tenha financiado a colagem, não parece ter ficado satisfeito com o estrago provocado, pois providenciou, meses depois, a sobreposição do mesmo motivo ao lixão que ali havia se instalado. Acredito que seja, no caso, o dono do portão que quer proporcionar a quem o visita uma recepção mais calorosa do que daria com chapas de ferro grosso e trincos enferrujados. Mas, adivinhem, não demorou para que a cópia da pintura sofresse outro ataque e, sim, isso mesmo, à altura do olho. 

Abaixo à direita, dissimulado, ausente o nome da empresa, encontra-se nosso velho conhecido: o dedo em riste marca da Gráfica Fidalga. 

Outro totem aponta para o céu nublado ao fundo, distante, altares do prédio vizinho.


                                     

O restaurador é persistente e agora não titubeia: já no dia seguinte a ferida está fechada. Porém, depois de tantas cirurgias, dá para notar, a bela não é mais a mesma.

                                

Hematoma decorrente de trauma? Inchaço pós-operatório?

                                 

Mestre Lacan e alguns de seus inspiradores se atentaram para o fato de que a mãe não ouve propriamente o choro do bebê como uma manifestação involuntária decorrente da fome, antes o escuta como uma mensagem prenhe de intenção e significado. Quem não conhece aquela mulher que conversa com seu gatinho sem a menor dúvida de que ambos podem compreender o delá do sentido das palavras? Respondendo aos resmungos do bambino como ao ronron do bichano, como se fossem chamados conscientes, sinais articulados, avós, mães, tias, irmãs estruturam a alma imberbe do recém-nascido por meio da lei da linguagem, a lei do diálogo. 

Claro, muitos homens também sabem como isso funciona. 

Já pensaram no que poderia acontecer à psiquê de meninas e meninos, cães e gatos, se uma madre dessas, muito seca demais, os tratasse como animais puramente animais? Que dizer se a fêmea oferecesse o peito apenas para encher o bucho do bicho, sem sinais de conforto, sem trocas de chamego, sem orientes de voz? Que desastre isso seria, não?! Graças aos deuses a maioria de nossas mães vive de ilusões!

Em outras postagens eu dei exemplos de como alguns grafistas de rua conversam através de sobreposições, conversam sem dialogar, de fato, ou seja, exatamente o contrário do que faz a mulher que se esforça para capturar no menor balbucio dos lábios do filhote o que mal se esboça em termos de mensagem. 

Em geral a intenção desses rabiscos e sobre-colagens é literalmente atropelar tudo que está por baixo. Se às vezes acontece alguma interação, ela costuma se dar sem o devido respeito, a nova intervenção não se atenta para a imagem de base, não parte dela para tomar nova direção, simplesmente a utiliza como trampolim simbólico para impor um novo sentido, que muito pouco ou quase nada tem a ver com a ideia original. 

Há quem diga que é assim mesmo, a comunicação dos antropóides é precária, tipo um game jogado às cegas. Pode ser. Eu, particularmente, não aprecio, embora não possa deixar de observar.

Por exemplo, verescutem o que se passou na cena abaixo. O enorme muro de contenção tinha ganhado, no passado, a pintura da figura de um olho. Pouco a pouco, ela foi fechada por um tapetão de raízes de hera. Um ano e meio atrás, no período das águas, o tecido vivo se encharcou, ficou muito pesado e desabou, revelando parte do panorama oculto. O curioso foi que a área exposta ganhou a forma de outro olho, maior. Se quisermos, podemos enxergar umas pálpebras lá onde as dobras do tapete se formaram ao tombar no canteiro junto à calçada e aí o desenho da margem surge como um glóbulo a nos mirar de soslaio, conseguem perceber?
   
Os meses passam, a folhagem morre e seca e o olhar por fim se desvela por completo.

Quando por fim a tela ressequida se rarefaz é que dá pra ver do que se trata: o esboço de uma baleia estilizada em tamanho natural, vejam:


Aos poucos, as chuvas voltam e os brotos da hera se expandem querendo reconquistar o antigo território. 

Mas antes eis que do nada surge um certo LAUGRS, outro gigante cetáceo, difícil de ignorar. 

Vá saber o que não quer dizer a insígnia que vem pegar carona em Moby Dick, enigma que veio para não se resolver... 

Parece que tudo se resume a chamar a atenção, e só, apenas, uma pequenez enorme!


Não tem nada não, a marca da violação vai também sucumbir, forças maiores comandam as transformações do planeta e tudo, tudo, as falsas grandezas, assim como as de verdade, de forma lenta, persistente e metódica, serão soterradas, uma e outra vez.


Fico refletindo sobre a última postagem, Conversas sem Diálogo, sobre o fato de que muita gente compra os encartes da Gráfica Fidalga não apenas para decorar ambientes privados, mas também para colar por aí pela cidade, emitindo uma mensagem aberta e não específica para o público anônimo que vai e vem inundando as ruas do centro, do Brás, do Bexiga, da Bela Vista ou da Liberdade. 

Isso me leva a pensar sobre o que leva uma pessoa a criar um produto simbólico para emiti-lo em direção ao éter, em direção a outro alguém sem face, impessoal, o qual ele ou ela não conhece e provavelmente jamais conhecerá. 

Discurso para grandes plateias arrebatadas, edição de imagens para a famosa série de TV ou de palavras para a revista conceito a publicar-se, música prêt-à-porter para tocar na Rádio Suriname, narrativa de áudio que vai parar nas nuvens, foto exposta em galeria foco-fugaz, enfim, qualquer significação pressupõe que exista um outro lado decifrador, uma pessoa de carne, osso e espírito que a receba e por isso mesmo esteja, em tese, em condições de incorporar essa coisa diversa de si vinda de fora antropomagicamente, abocanha-la, mastiga-la, digeri-la e regurgita-la, senão de volta para a origem, que o seja para a mãe natureza, que o seja na forma de adubo de plantas que vão virar comida mais uma vez, concordam comigo? Não consigo deixar de achar estranho isso de dizer, mostrar, exibir, apenas por dizer, mostrar, exibir, sem esperança de um dia ser replicado ou retrucado. Mentes e corações abertos em geral? Sei não! Excesso de generosidade? Hahaha, duvido! Só pode ser alienação, então, do verbo alienar-se, vender-se ou dar-se sem ser demandado. 

Mas ué Mané, não é isso mesmo que você está fazendo ao compor e publicar esse blog: editar para o vácuo?, entrar sem ser convidado?, afirmar sem ser questionado? 

Acontece que a internet veio para solucionar todas as nossas carências de contato, se lembram? Ainda tenho esperanças, muita gente ainda há de me responder, com açúcar e com afeto e também com ácido, dando impulso ao embate criativo. E minha confiança não se restringe ao que podemos eu e meus interlocutores em rede construir aqui nesse espaço de diálogo verdadeiro possível, essa fé vai muito além pois suspeito, 1, que não dá mais para recuar, 2, que a humanidade já andou longe demais no invento e na popularização de meios de comunicação poderosíssimos, 3, que estamos pois todos aptos a tecer o entendimento e, 4, nos encontramos, portanto, no limiar de uma era gloriosa, no começo, apenas, da construção da mais revolucionária de todas as empresas de ensino e aprendizado. 

O amor é o último que não morre...















Meses depois, a seca está prolongada, revelam-se mais dois olhos, o mar se confunde com as baleias.

Comentários

Postagens mais visitadas