ARQUEOLOGIA DO PRESENTE

Sigo fotografando as folhas da esquina. Essa da foto abaixo está se amarelando enquanto revela um trançado enferrujado de estrelas de David. 




Suspeito a princípio que o desenho é o resultado do imprint de alguma cerca de arame onde a folha vicejou, verdejou, e depois morreu, colada. Investigo os arredores da copa da árvore de onde ela caiu. Não, os galhos estão livres, bailando ao vento, não pode ser. 

Já estamos nos acostumando, na certa foi Deus Pan quem fez isso, querendo de novo comunicar-se conosco com seu estilo enigmático e zombateiro que se serve de sonhos despertos para nos dizer verdades irracionais inquietantes.

Dá pra ver, nessas pesquisas visuais não preciso ir muito longe, me bastam meus caminhos habituais vistos de uma calma outra. 

Alguns materiais do presente, como finas placas de granito bem dispostas sobre moderna argamassa, devem ficar grudadas no lugar uns cinquenta anos, pouco mais, pouco menos? Folha de arbusto, assim como a de papel, sobrevive o que...dias? semanas? 

arqueólogo do presente é uma espécie de crime scene detective. O detetive fica fuçando a morte no intuito maior de preservar os vivos de futuros ataques. Já o cientista, ao revirar o passado, pretende revivificar o espírito maior da raça humana: a Cultura, as culturas. 

A arqueologia do presente tem uma vantagem de trabalhar sobre pedra, cerâmica ou concreto, mas também sobre os materiais perecíveis. Tudo depende, nesse caso, não de longas e detalhadas escavações, mas da simples intuição do momento de passagem, afinal, os indícios estão à flor da pista. 

Mas é preciso mais que ver, é preciso ver com sabor de saber. 

Na mesma calçada nossa conhecida onde flagro as folhas que morrem aos poucos, em degradé, há poucos dias irrompeu a fúria. Não testemunhei o ato em si, mas foi fácil deduzir o que aconteceu pelos vestígios dispersos pelo chão gris de cimento e granito.

Tudo indica que o centro da discórdia é, de novo, uma mulher. Vimos em postagens anteriores como o ódio mira os grafites e colagens de rua com figuras femininas, agora a vítima é o álbum de fotografia, exposto à execração pública. 



Retratos largados na chuva dos últimos dias, novembro frio, esquisito, poucos dias depois, alguns centímetros a rebordo, brilham sob o saliente sol matinal. 



Onde estão os varredores de rua da prefeitura? Quando virão recolher os corpos desmembrados? Ou vou ver a história virar pós debaixo de meus pés?  

Uns estão em pedaços, outros, somente abandonados à torrente do tempo. 



Lá se vai na enxurrada a metade da família. 



Adelante um flash de meia intimidade. 


Paisagens impessoais se salvam inteiras, o que prova que a violência é dirigida, tem como alvo as pessoas e, aparentemente, os familiares.



O pote de argila deixado intacto que não falta aqui.


Esclarece um pouco aqueloutro que esfacelou-se acolá.



E assim aprendemos na prática, leitores meus, corações de estudante.

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