FUTURO DO PASSADO OU O ENIGMA DO AUTO-ENGANO
O magnífico trabalho de pesquisa e ação social da arqueóloga Niéde Guidon está retratado de maneira muito sensível e didática no documentário a que encaminho o leitor-ouvinte no link abaixo.

No vídeo, seguimos os especialistas franceses Paul e Jean enquanto acompanham Niéde e sua colaboradora, a Giselda, pelos sítios arqueológicos mais importantes do Parque Estadual da Serra da Capivara.
No percurso, esses dois sujeitos muito calmos e precisos entrevistam diversos personagens envolvidos nos projetos que hoje se desenvolvem na região. Com sua postura de questionamentos sempre muito bem delimitados, aliada a uma escuta sóbria e respeitosa de dar gosto, eles conversam, muito naturalmente, ao longo do filme, com parceiros nativos dos pesquisadores, visitantes e estudiosos brasileiros e europeus que se debruçam sobre os incríveis desenhos rupestres do Parque.
Depois de quarenta anos de pesquisa heroica, minuciosa e suada, nessas bacias calorentas do agreste do Piauí, as atuais tecnologias de registro e manipulação de dados informatizados andam facilitando a vida dessas formiguinhas cabeçudas que são os arqueólogos e estão revelando novos e assombrosos detalhes das pinturas que se espalham por uma enorme área essencialmente rochosa e hoje muito mais árida do que no tempo em que foram traçadas, aparentemente, cerca de vinte e oito mil anos atrás.
São o testemunho da presença da humanidade nas Américas em período muito anterior ao que antes se acreditava. O debate essencial do documentário é esse, ou seja, como está sendo dura a luta para desbancar a teoria predominante que defende que essa incursão se deu milênios depois do que apontam os fartos indícios encontrados na Serra da Capivara.
O conjunto de atividades do Parque é gerido pela FUNDHAM - Fundação Museu do Homem Americano.
Ficamos informados também da existência de um projeto social muito interessante, já consolidado, que floresce no âmbito da FUNDHAM. Ele promove a formação profissional e comércio de objetos em cerâmica esmaltada de aspecto moderno em que se usam os motivos rupestres como tema decorativo. Foi instituído no povoado de Barreirinho, o mais próximo de onde acontecem as pesquisas de prospecção e o trânsito controlado de visitantes. O projeto entrelaça de forma inteligente a pesquisa científica de ponta, o fomento ao turismo cultural e o incremento dos recursos da população cabocla local. É um trabalho e tanto, renitente, arretado, iluminado, pragmático pra caramba e muito muito comovente, vale a pena dar uma olhada no documentário e, quem sabe, ir lá e ver com os próprios olhos!
No fim do vídeo aparece um grupo de crianças lindas, estudantes de escolas regionais, que vieram ver e admirar os desenhos e sorver de algum modo a essência do enorme e complexo acervo de pistas que a paleontologia e a arqueologia vão reunindo e exibindo, pouco a pouco, com respeito às espécies extintas de animais e aos povos que habitaram esses labirintos de pedra na mais remota antiguidade.
Infelizmente, trata-se de exemplo raro de iniciativa que projeta o antigo no novo, num país em que em geral se queima, se corrói ou se deturpa o passado, o que contribui, entre tantas outras misérias, para negar o futuro às massas que se tornam mais e mais empobrecidas material e culturalmente.
Em certo ponto, os cientistas condutores das filmagens entrevistam um tipo descolado, exímio artista visual de rua, o Zé Palito, que se apresenta como curioso em relação à pintura rupestre e aos conhecimentos arqueológicos acumulados. Por um bom tempo as câmeras flagram os três tipos em profunda conversação, trocando seus dons de prática e conhecimento de modo tranquilo e mutuamente respeitoso. Vale a pena transcrever a essência do diálogo que acontece a partir de 41:34 minutos da edição. É um maravilhoso exemplo de escuta, de humildade, da parte de eruditos refinados em relação ao conhecimento, digamos, comum. Todos os lados sempre têm muito a aprender.
Zé observa que sua arte e a antiga têm em comum que se expressam numa superfície sólida ao ar livre. Algumas figuras são de grande tamanho, podem ser vistas de longe e por várias pessoas de uma só vez. Outras são pequenas e temos que nos acercar para contempla-las. Se o artista pinta sob o sol, é possível que seu desenho seja menos detalhista, mas se trabalha na sombra, em lugares protegidos e frescos como essas grutas, terá mais conforto para caprichar no acabamento. As pinturas da Capivara e os murais de Zé Palito se produzem em camadas de representação. Fica muito mais difícil interpretar o significado das figuras rupestres pois não possuem as informações escritas que Zé adiciona a alguns de seus grafites para melhor contextualiza-los.
Tudo indica que nos deparamos, na Serra da Capivara, a exemplo de outros sítios rupestres, mundo afora, com as mesmas sobreposições que tenho identificado em minha pesquisa da arte visual de rua do centro de São Paulo e que também caracterizam o trabalho plástico de Zé Palito, só que nesses dois exemplos a superposição de sentidos parece que se dá de forma um tanto diversa daquela que tenho registrado com meu celular em paredes e muros da megalópole caótica e desarraigada.
Voilá les enfants, c´est ça: na Capivara o passado e o futuro dialogam, em franjas de sentido que não se atropelam, não se desperdiçam e seguem formando novas e instigantes configurações.
Não que as coisas estejam fáceis para a administração do Parque, como tem acontecido com boa parte dos escassos projetos científico-culturais que possuímos. O modelo de captação de recursos é precário, as verbas vão minguando, as obras estruturais, como estradas asfaltadas e o pequeno aeroporto, se arrastam quando não saem ou nem entram no papel. Para aprofundar o assunto, recomendo a recente matéria jornalística do link seguinte:
https://thoth3126.com.br/brasil-parque-nacional-da-serra-da-capivara/
Enquanto isso, em São Paulo...

Todos se lembram da Moça do Maiô Azul da postagem Vikingos e Artistas Visuais de Rua, e também se recordam do modo como foi visualmente violentada em diversas etapas.

A assinatura do Bueno está sendo consumida pois foi feita muito rente ao solo, o prédio está para vender mas ninguém parece interessado, o proprietário não retoca a tinta das paredes desde então e o reboco começa a aparecer lá onde a chuva respinga a ponto de fazer o mato medrar.
Partindo desse conjunto de pistas, vou bancar o detetive. Se o tal Bueno não reescreveu seu nome, não foi ele, supõe-se, mas algum outro artista da mesma estirpe que passou pelo local essa semana e na certa se enterneceu com a barbaridade que fizeram com la beladona Moça do Maiô Azul: idealizou, mandou imprimir, na gráfica, com dinheiro do próprio bolso, e colou outra pequena notável por riba da original, com outro conjunto de maiô e touca de natação, agora em outro tom, espécie de vermelho entre o sangue e o goiaba.
Que graça isso devia ser! Vemos pelo foco de minha câmera o fato que desaconteceu, registros expertos dos vestígios que o sobreposto artefato deixou na cena do crime depois de vilipendiado.
A restauração teve vida tão curta, ai de mim! Afinal nem pude dar um vistaço na cara da mulher, saber se era a mesma ou outra linda pessoa! Tampouco me foi dado fotografar a nova modelo ainda virgem das marcas do tempo e da desumanidade.
O novo atentado é ao mesmo tempo contra o feminino e contra o espírito da arte e tudo leva a crer que o agressor não esperou um só dia, dessa vez, para fazer a cagada. Dá primeiro raiva mas, depois, só fica a tristeza!
Podemos, claro, do futuro, imaginar como era a figura desfigurada, como faz o arqueólogo ao recompor os cacos de civilização que retira do fundo da dunas de forma ultra cuidadosa. Foi muita sorte nossa que tenham sobrado as torneadas cochas e os pés delicados que se roçam charmosamente.
Meu olho mágico deduz que o bruto infeliz do momento parece ter agido com muita fúria, pois as pistas indicam que arrancou o papel de um só golpe e aniquilou a jovencita de uma vez por todas.
Acredito que sejam diversos os violadores, pois são diferentes seus modus operandi. O primeiro jorrou baba na boca porque na certa queria usar o sexo para rebaixar, humilhar a pobre criada criatura. O segundo arrancou os olhos para que ela não desse testemunho do delito e depois cortou fora a língua fora para privar a vítima do direito à voz própria. Agora o extermínio foi abrupto e quase completo. Curioso é que deixou intacta, de relance, o v da vulva que o monstrengo anterior tinha mutilado com ódio frio, mais calculado.
Talvez o novo agressor, no ímpeto, não tenha notado o que deixava para trás. Mas também pode ter sido outra mulher que fez isso, penso, uma invejosa. Quem jamais saberá...
O deputado Paulo Maluf deu, muitos anos atrás, um conselho de malaco velhaco, classudo, para a ralé da bandidagem. Ele disse, abre aspas: "estupra mas não mata". Ora pois parece que há os que matam mas não estupram, afinal maldade para todo gosto é que não falta nesses sertões das solidões das multidões da baixa modernidade.
O deputado Paulo Maluf deu, muitos anos atrás, um conselho de malaco velhaco, classudo, para a ralé da bandidagem. Ele disse, abre aspas: "estupra mas não mata". Ora pois parece que há os que matam mas não estupram, afinal maldade para todo gosto é que não falta nesses sertões das solidões das multidões da baixa modernidade.
Enquanto isso, dos subterrâneos da delicadeza reaparece o artista que ainda insiste em lançar seu grito, apesar da escassa esperança que possui de que possa ser escutado:
No caso, estou seguro de que esse último restauro foi obra do mesmo sujeito que implantou o cartaz da Moça de Biquini Vermelho entre o Sangue e o Goiaba, pois deixou como estava o que sobrou do grande rasgo, o tapa-sexo e as pernas charmosas. O cara é insistente! Genial!
Descubro, observando com atenção, dia após dia: a figura anterior possivelmente ostentava um outro cartaz, porque o dedo indicador da moça de vênus vermelha restou um pouco acima do de boina verde e parece estar dobrado do mesmo modo, como se segurasse alguma coisa, percebam.
Quem poderia duvidar, poucos dias depois, alguém já tenta censurar a mensagem do cartaz, olhem isso:
Aparentemente, o sujeito que começou a furar a placa de "quero meu 13º" não estava escavando em busca dos peitinhos ou do umbigo da gostosa. Seja como for, a agressão é mais tímida, embora siga sendo agressão. O mais provável é que se trata da ação de um trabalhador que passava por ali, um simples trabalhador que não tem, tudo indica, o ódio cego à mulher e à arte manifesto pelos demais ofensores, mas que se sentiu, de um modo muito estranho, ofendido ele mesmo pelo fato de que um grafiteiro qualquer esteja tentando resistir à ação dos exterminadores de outro nível que vão eliminar direitos desse mesmo trabalhador.
Estou ficando doente com tudo isso. O que posso fazer? Pego tudo isso e jogo nos ombros do psicanalista, porque esse é seu trabalho de abutre, me ajudar a reciclar o lixo de sentimentos que a situação limite está produzindo em meu coração. Todo mundo sabe, analistas falam muito pouco, mas esse às vezes fala e falou, ôôô, Naldo, você já deve ter visto em seus documentários aquelas aves que fingem que estão com a asa quebrada ou mancam para atrair para longe a atenção de um predador que ronda seu ninho. Pois bem, está provado, alguns animais possuem esse poder incrível, que supõe uma tremenda argúcia psicológica, o poder de enganar o outro. Por outro lado, tudo leva a crer que a única espécie capaz de enganar-se a si mesma é essa mesma em que você está pensando, a nossa, a espécie humana.
Em casa, mais tarde, como de costume, reflito a pérola escassa e preciosa que saiu da concha do bom sujeito. Tudo bem enganar o outro, a princípio, pois pelo menos existe a chance de que o outro, em seu próprio benefício, saiba se defender. Mas como?, como se proteger do auto-engano? Como impedir que um homem e uma mulher acertem os próprios pés quando imaginam que atiram no peito um do outro? A partir de que instâncias alguém pode se resguardar das próprias mistificações, ó céus?!
É então que surge o pregador da propaganda, nosso velho conhecido, pois atuou também sobre o Sábio Chinês da Nuvenzinha Dark Blue, como tratei no fim da penúltima postagem. Notem, dessa vez foi ainda mais indiscreto, colou seu folheto preto no branco sem vida bem sobre o rosto da malfadada bonitinha. Entendi sua estratégia oportunista. No caso, ele deve ter pensado que atrairia para os tais empreendimentos comerciais a atenção dos passantes que miram para obras de arte, numa espécie de armadilha idiota, já que a arte, por conta disso mesmo, foi pro béléléu. Acontece que alguém ficou descontente com o mesmo ALUGA-SE e foi lá e também desfigurou o panfleto, hahaha, a guerra continua e a merda está virando uma tremenda barafunda.
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