O SEM FUTURO DOS SEM PASSADO
Hoje cedo vi nos jornais a notícia de mais um grande incêndio. Desta vez, felizmente, não se perderam vidas humanas, mas ardeu na fogueira a boa parte do edifício bicentenário, das instalações acadêmicas da UFRJ e do grande e valioso acervo histórico, antropológico e arqueológico do Museu Nacional no Rio de Janeiro, coroando um período particularmente duro de sucateamento da instituição e do país em decorrência de um movimento complicado das forças da ignorância, da demência, da velhacaria e do obscurantismo.
https://www.diariodocentrodomundo.com.br/essencial/gostaria-que-o-museu-nacional-permanecesse-como-ruina-memoria-das-coisas-mortas-diz-eduardo-viveiros-de-castro/
https://www.diariodocentrodomundo.com.br/essencial/gostaria-que-o-museu-nacional-permanecesse-como-ruina-memoria-das-coisas-mortas-diz-eduardo-viveiros-de-castro/
Trinta anos atrás, quando eu era um rapaz, vivia em Belo Horizonte. Lá eu tive um amigo, o André Cotta, que mais tarde se formaria em regência e se tornaria professor universitário. Antes disso, ele trabalhou por uns tempos num projeto muito bonito que visava resgatar partituras musicais dos porões das velhas igrejas coloniais mineiras para restaurá-las e permitir que revivessem, ou seja, voltassem a ressoar nos templos, praças e salas de concerto, por via de quartetos de cordas, pequenas orquestras, corais.
Nessa mesma época, participei do Coral da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais onde ensaiamos e apresentamos ao público diversas dessas peças resgatadas, magníficas, todas. Não sei a quantas andam hoje em dia tais iniciativas de resgate, proteção e disponibilização do patrimônio musical. Espero de coração que tenham prosperado, mas temo que tenham sido raras, desde então, ou, de todo modo, insuficientes para deter o longo processo de descaso e abandono que vem destruindo, aos poucos, os grandes tesouros culturais de Minas e do Brasil.
Como ceramista, sempre me pergunto: porque carajos não chegou a nós a tecnologia de fabricação da chamada “cerâmica policromada” com que os oleiros da tradição barroca compuseram a imensa procissão de imagens sacras que conhecemos no presente?! Acaso não existem ateliês italianos e japoneses onde as fórmulas de esmaltes cerâmicos passam de pai para filho há dezenas de gerações e seguem sendo manufaturadas mais ou menos ao modo antigo? Deve haver estudos aprofundados a respeito desses processos de extinção técnica e artística em Minas, Bahia, Pernambuco, mas confesso que os desconheço e para dizer a verdade, certas coisas, se servem apenas para dar tristeza e revolta, melhor nem saber.
A região central de São Paulo atualmente está bastante modificada em comparação com os tempos em que Mário de Andrade e seus amigos, os modernistas, andavam por essas ruas, um século atrás. O extenso cinturão de bairros urbanizados na forma de quadras e vilas de sobradinhos geminados, como os que vemos nas fotos, pouco a pouco, vai sendo desmantelado.

As colinas da Aclimação, Liberdade e Bela Vista, que ligam o centro velho ao alto da Avenida Paulista, ainda hoje preservam muitas ruas, vielas e vilinhas de sobrados. Foram colonizadas antes das ladeiras mais suaves do outro lado do espigão da Paulista, onde, porém, a velha arquitetura foi a primeira a sucumbir ao avanço dos altos prédios de escritórios e residenciais que hoje dominam amplamente o Paraíso, Cerqueira César e Consolação.

Na subida da Brigadeiro Luís Antônio, o antigo caminho de Santo Amaro, velhos casarões ostentam feridas abertas e muitas cicatrizes antes da derrocada.

Não que os edifícios estejam ausentes na baixada do centro. É até de se perguntar porque seu domínio aqui não é maior. Existem testemunhos eloquentes de como a modernidade vai pouco a pouco se assenhorando também dessa ribeira do espigão, ao modo brasileiro, ou seja, sem diálogo, na porrada, soterrando, despedaçando, estrangulando o passado.
Dois exemplos assombrosos da técnica do estrangulamento:
Mais para o fundo do Vale do Anhangabaú:
As imagens abaixo são do que restou de um hotelzinho magnífico da Rua Brigadeiro Luís Antônio. Passo aqui há mais de duas décadas e sempre fiz questão de mira-lo. Vi as últimas cores empalidecerem e o mato ir crescendo nas frinchas do cimento roto, cenas deploráveis de decadência. Em certo ponto da tragédia anunciada alguém teve a intenção de reformar o edifício histórico, como vemos nas fotos, porém, de novo, aqui tudo parece que é construção e já é ruína. As redes de proteção da obra interrompida agora se fundem ao desmanche.
Nas fotos seguintes, vemos um modelo comum de beco de acesso aos cortiços do bairro central da Liberdade.
Na frente está a típica loja de produtos orientais, estreita e profunda, e o que restou do terreno, bem atrás, está ocupado por velhos sobradinhos decadentes que hoje abrigam famílias pobres, sustentadas por catadores de reciclável, empregados de restaurantes, jovens trabalhadoras dos telemarketings da vida e demais serviços mal remunerados que proliferam nas redondezas, entre outros.
Muitos são migrantes recentes, de primeira geração, da África ou do Caribe, uns tantos, na certa, solteiros e solitários, que ocupam ou dividem quartos de casas que viraram pensões informais, sem contratos de aluguel, sem exigências de documento e sem segurança jurídica, vivendo à mercê de algum senhorio impiedoso.
Poucos metros acima vemos, na sequência de fotos, como está nascendo um prédio de fundações robustas. O procedimento agora é outro, o da terra arrasada. A construção ocupa por inteiro a área correspondente a dois ou três terrenos das mesmas dimensões daquele que tem o cortiço visto acima. Se não me engano, antes havia ali um restaurante de dois andares, de culinária japonesa e uma loja de artigos rituais tais como incensos, velas especiais e nichos de madeira envernizada muito usados pelas famílias chinesas em seu culto aos antepassados.
É bem provável que vá surgir no lugar um só bloco de estacionamentos escalonados, sem varandas, sem sacadas, sem janelas sequer, ou seja, sem o menor traço de vida carnal, apenas o mecânico a serviço do mecânico.
Semanas depois:
Semanas depois:
Poucos dias depois, começam a montar os andares:

Quando a operação estiver terminada, prometo que volto à cena do crime, já higienizada, para fotografar o belíssimo resultado.
Na quadra acima, na mesma calçada, capturo o perfil lateral da Capela Nossa Senhora dos Aflitos. Com o avanço da cidade, houve um dia em que ela perdeu seu largo da liberdade e ficou entalada bem no fundo de uma ruela, agora devassado pela demolição de outro conjunto de comércio e habitação. É apenas um pequeno lapso de tempo-espaço, uma pequena janela fotográfica que em breve vai se fechar. Estive presente na abertura, também estarei para registrar a nova sepultura que irá se fechar à vista só Deus sabe até quando, no futuro.
A megalópole se fagogita como um animal primitivo, engole-se a si mesma pelas entranhas.
Comentários
Postar um comentário