O SÁBIO CHINÊS E A NUVENZINHA DARK BLUE
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Quando fotografei pela primeira vez o Sábio Chinês e a Nuvenzinha Dark Blue, eles já estavam bastante envelhecidos, desbotados, descascados, poluídos, talvez um pouquinho mais bem preservados do que nossa amiga a Moça do Biquini Azul, mas já bastante maltratados pelas forças da natureza e da cidade com que o artista plástico de rua conta para dar, digamos, um acabamento inusitado, fora de controle, para a obra eminentemente exposta a tutto ed a tutti.

Alguns dias depois a imagem aparece mudada de algum modo que eu não pude intuir, a princípio, pois o detalhe é, à primeira vista, insignificante. Devo tê-lo vislumbrado mais de uma vez, pois passo no lugar com frequência e quase sempre lanço sobre o sábio uma mirada de soslaio, quando não me detenho para cumprimenta-lo fazendo, com a alma, uma elegante inclinação ao modo oriental.
De fato, admiro muito sua atitude compassiva, todavia tristonha, diante dos males causados na e pela humanidade em virtude daquilo a que uma certa unanimidade burra chama de “progresso tecnológico”. É que ele está, no desenho vivo, mirando a palma da própria mão direita voltada para cima e ela suporta uma muda de planta esturricada que está a ponto de receber as gotículas de um chuvisco que tomba da nuvenzinha. Abarcando a imensa coisa pequenina, o mestre, maior em perspectiva, semelha um Deus desolado.
Fico imaginando o monge enlevado de meditação, lá em seu ambiente natural, em pleno ó da China rural, imerso na mística de seus ancestrais, e penso como o sujeito se encontrava, então, em diversos aspectos da arte do bem estar de viver, séculos e séculos à frente da civilização capitalista, urbana, industrial, mecânica e eletrodomesticada que é a nossa, essa de que tanto nos orgulhamos como estando, em todos os aspectos, adiantada em relação a todas as demais.
Alguém há de dizer: “tá bom, vá para Pasárgada viver sem antibiótico, cirurgia asséptica, aviação civil e smartphone”!... Tenho que me render, o argumento é forte, afinal, Augusto César teve que arrancar os molares podres da boca na marra, a sangue e suor, mesmo tendo aos pés todos os tesouros imperiais de Roma, enquanto hoje em dia o benefício da mais simples anestesia dentária está acessível até ao camponês do interior pobre das Minas Gerais, embora não o seja para todos pois, aquém dos pobres, existe também no país uma multidão de miseráveis vivendo inexplicavelmente no ground zero da história.
So the question is porque eu ainda estou aqui e agora lamentando as perdas das grandes conquistas civilizatórias do passado e daquelas outras, who knows?, muito maiores, que o mundo atual parece querer roubar ao futuro?!
Ó lástimas!!
Contudo, enquanto houver humanidade, haverá esperança. Dias, semanas se vão, até que mais alguém passa aqui com uma lata de spray na mão e uma ideia na cabeça. Deve estar usando o restinho que sobrou de algum rabisco maior traçado aí pela noite. Viu o deus benevolente a ponto de deter a chuva ácida e decide usar as últimas gotas de tinta que possui para sobrepor um detalhe à cena em foco, pequeno em proporção mas de grande significado. Agora vemos que se desprende da palma para cima da mão direita do sábio uma flama vermelha, um jato de luz, um calor de alma, uma bola de Chi, energia vital, tudo depende do ponto de vista com que vemos a coisa. A coisa sobe de encontro à nuvenzinha dark blue e há de deter sua sanha devastadora!

Essa intervenção na pintura, delicada, dialógica, foi idealizada e executada por instinto por uma mulher, quem quer apostar?
Mais dias, mais semanas se passam. Rios e rios de aço, alumínio, titânio, borracha, plástico, vidro, passam também por debaixo do viaduto que cruza a via norte-sul, marcando a hora. Acima, lá está o sábio, envelhecendo ainda mais. Como eu já previa, acontece de novo, um novo olhar se detém diante da figura e analisa a ideia que ela procura nos transmitir.
Percebe-se que esse outro olho da alma também não se contenta em mirar e admirar e introduz-se a si mesmo no palco, como vemos na foto, pega carona na mensagem e tudo indica que quer igualmente se comunicar. Não foi o primeiro. Na certa, não será o último. Esse é homem, dá para ver. Isso talvez explique porque não se contenta apenas em impor seu traço sobre a figura original, senão que mete o bedelho onde? Ora ora, no detalhe rouge pincelado pela mulher, calando-a e, logo, calando o diálogo que ela, tão habilmente, tinha instaurado com o grafiteiro ou grafiteira da base. Poderia ter entrado na arena de debate de outra forma, mais humilde, mas não...
Um olhar mais frio, todavia, me faz entender que não se trata do pior tipo de homem, talvez o cara nem quisesse degolar a voz feminina, no caso, nem nada, tenho uma tendência a dramatizar tudo em excesso, reconheço. Talvez ele nem tenha notado o valor da tal notinha em vermelho, afinal nem todo mundo detém grandes fantasias de coração pra ver as coisas. Pra falar a verdade, dá até para admirar a ideia em si, tem uma intenção metalinguística interessante, me sinto como Van Eyck ao pintar o espelho no fundo da cena do “Casamento dos Arnolfini”, refletindo-me a mim mesmo ao fotografar a colagem do fotógrafo que me fotografa.
Reparem que agora só restou, acima do fotógrafo, uma nesga da nota feminina e por sorte ainda sabemos o tanto que ela significa graças a essa minha fantasia coronariana.
Tudo bem, dou minha emoção a torcer, o Fotógrafo da Lente Angular, lente longa, grossa, que vai fundo, em zoom, de fato, poderia ser alguém pior ou quem sabe, nem quero pensar, poderia ser alguém muito pior, poderia ser como esses membros de gangues bem capazes de borrar o nobre desenho inteirinho com a pichação de signaturas, signaturas insignificantes que apenas eles mesmos e seus inimigos sabem decifrar pois apenas eles e seus inimigos possuem o segredo do código da língua que usam entre si para não conversar.

É isso, pessoal, lamento dizer mas em pleno século vinte e um existem tipos, homens e mulheres, que se divertem em marcar territórios de poder do jeito que os cães fazem, mijando em canto de muro, pé de poste e pedra de encruzilhada.
Pena que quando o mundo acabar nem vai dar pro pentelho aqui dizer: “eu avisei!, eu avisei!”
No dia seguinte ao fim do mundo, reservo um tempo mais longo e uma atenção mais concentrada para analisar, com todo o cuidado necessário, a nova intervenção sobre a imagem do sábio e da nuvem. Dessa vez vou fornido das ferramentas do arqueólogo do futuro, as quais me permitirão trazer à luz, de modo sutil e metódico, as diversas camadas com que se vão revelando as realidades mais e mais profundas.
De cara, percebo que as gangues das assassinaturas passaram por aqui mas não são tão ousadas a ponto de urinar direto em cima da venerável persona. Até tentam, mas não conseguem, apenas respingam a áurea, borrando em redor.

Uma pesquisa mais minuciosa deixa entrever que a figura do sábio, na verdade, é que está implantada sobre rabiscos previamente existentes.

Só então me dou conta de que o olhar do fotógrafo é mais maroto do que, a princípio, a vista superficial nos tinha revelado. Deve haver uma explicação para isso, foi o que pensei. A verdade logo fica às claras, a redoma da grande angular capturou e prendeu, senão vejamos, uma boneca? uma miniatura de mulher? Uma mulher, de todo modo, e ela está meio que desnuda.
Pois não é que a coisinha se parece com Maryleen Monroe, o protótipo loiro daquilo a que denominamos, por convenção, ou seja, por falta de reflexão, um “símbolo sexual”?

Dias depois, alguém começa a despregar o cartaz mas, por algum motivo, se detém:
Como previa, mais uns dias se passam até que alguém vem completar o trabalho e acabar de destacar o fotógrafo e sua musa. Impossível saber se se trata da desobra do mesmo panaca que colou, indiferente ao que está embaixo, bem nas têmporas do sábio, o cartaz de aulas particulares de matemática que vemos ao fundo:
O mais grave, porém, é o que viria acontecer um mês depois. Os rabiscadores de assassinaturas voltaram e estão cada vez mais ousados, desrespeitosos. Essas sobreposições agressivas ocorriam menos, tempos atrás, talvez porque houvesse um mínimo de regra entre os combatentes. Parece que agora mais não.
Seja como for, dias depois, incrível!, alguém foi lá e apagou os rabiscos, vejam, ainda restam vestígios:
A conversa sem diálogo pode não ser eficaz mas é incessante. Meses se passam e as intrusões variam de tom e gosto:
Como previa, mais uns dias se passam até que alguém vem completar o trabalho e acabar de destacar o fotógrafo e sua musa. Impossível saber se se trata da desobra do mesmo panaca que colou, indiferente ao que está embaixo, bem nas têmporas do sábio, o cartaz de aulas particulares de matemática que vemos ao fundo:
O mais grave, porém, é o que viria acontecer um mês depois. Os rabiscadores de assassinaturas voltaram e estão cada vez mais ousados, desrespeitosos. Essas sobreposições agressivas ocorriam menos, tempos atrás, talvez porque houvesse um mínimo de regra entre os combatentes. Parece que agora mais não.
Seja como for, dias depois, incrível!, alguém foi lá e apagou os rabiscos, vejam, ainda restam vestígios:
A conversa sem diálogo pode não ser eficaz mas é incessante. Meses se passam e as intrusões variam de tom e gosto:
Sempre saborosas e bem humoradas as crônicas. Um olhar poético e uma viagem no tempo que passa através de imagens e ações humanas.
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