CHIFU-SHIVA
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Eu e Chifu vamos, cada um a seu modo, dormir quase todo dia por volta das dez e meia da noite. Na verdade, sendo um bicho notívago e sorrateiro, fica de lá pra cá, zanza, retorna, se aconchega do ladinho, em seguida um pouco mais longe, sabe-se lá porque, sempre imprevisível, fluido como uma sombra.
Quanto a mim eu é que nem sei, nem de mim, nem de ninguém...
Quando dá seis e cinquenta e pouco, nossa hora de despertar, Chifu começa a rondar pela casa em crescente grau de agitação. Malandro respeitoso, primeiro me observa até que percebe que estou voltando à tona e só então vem passear em cima de mim como se eu fosse uma ilha sua, seus vales, suas montanhas. Atravessa, escala, roça, vem e volta, senhor marcial de seus domínios. Quando está de todo seguro de que não vou cair em novo sono lapidar, se vai de vez, como se tivesse grandes afazeres, horários a cumprir, essas coisas, ou seja, lava as mãos, acordei porque quis.
Apelidei-o de Chifu quando vi sua primeira foto, antes mesmo de encontra-lo, digamos, pessoalmente. É que a faixa escura que recobre seus olhos se assemelha àquela do lendário mestre Chifu, personagem do desenho “Kung Fu Panda”.
Quando dá seis e cinquenta e pouco, nossa hora de despertar, Chifu começa a rondar pela casa em crescente grau de agitação. Malandro respeitoso, primeiro me observa até que percebe que estou voltando à tona e só então vem passear em cima de mim como se eu fosse uma ilha sua, seus vales, suas montanhas. Atravessa, escala, roça, vem e volta, senhor marcial de seus domínios. Quando está de todo seguro de que não vou cair em novo sono lapidar, se vai de vez, como se tivesse grandes afazeres, horários a cumprir, essas coisas, ou seja, lava as mãos, acordei porque quis.
Apelidei-o de Chifu quando vi sua primeira foto, antes mesmo de encontra-lo, digamos, pessoalmente. É que a faixa escura que recobre seus olhos se assemelha àquela do lendário mestre Chifu, personagem do desenho “Kung Fu Panda”.
Trata-se menos de um animal, selvagem ou domesticado, e mais de uma força sobrenatural da natureza, anônima, impessoal, magnificente em sua assignificância. Possui uma completa falta de propósito que, todavia, inexplicavelmente, como veremos, produz profundas determinações.
Esse gato não admite compartimentos fechados, é um arrombador nato. Vive a arreganhar portas de cozinha, quarto, banheiro, mas também investe sobre a dispensa, armários, guarda-roupas, estantes corrediças, em sua sanha incessante de fantasma brincalhão.
Algumas barreiras que coloco, logo se mostram precárias, afinal, é um fantasma.
Existe uma árvore na esquina da rua de casa. Não sei o gênero dela, tampouco a família, mas não me importo, estou mais interessado na beleza de suas folhas, sobretudo depois que vão ao chão. Seriam lindas não fosse apenas por seu desenho simples e elegante, em forma de barcaça, mas porque, como a foto demonstra, na ponta a linha tangente sofre dois mínimos recortes. Algo diz que foram concebidos e executados por algum artista caprichoso, será difícil descobrir nesse detalhe arquitetônico função meramente prática.
Quando essas beldades tombam dos céus e, sobre o granito cinzento da calçada, passam a morrer, justamente aí é que se apresentam mais vivas aos olhos, mais saborosas. Pouco a pouco, hora após hora, dia após dia, vão perdendo e ganhando novos tons, do verde passam ao amarelo que verte para o cinza, marrom, castanho, preto, enquanto secam e se contorcem, em lenta agonia.

Formas de transição muitas vezes se dão, partes da folha permanecem verdes, enquanto outras vão tendendo ao amarelo ouro ou claro. Listas negras, riscos, manchas ferruginosas podem também, entrementes, aparecer. Vez por outra, quando uma delas atrai minh' atenção de modo irresistível, a recolho e levo para casa.
Por tantas ando suspeitando que Chifu seja Shiva, Deus da destruição renovadora, Deus da revolução. Chifu-Shiva, isso mesmo, as línguas evoluem, adotam novas sonoridades para designar uma única e mesma coisa, não resta dúvida, Chifu-Shiva é o nome!
Uma bela noite estou dormindo e de repente acordo em sobressalto após um bruta estrondo. Corro para ver o que se passa. O dia está clareando. O meliante, naturalmente, safou-se da cena do crime. Sei que não está muito longe, refugia-se em cavernas das redondezas; se eu pudesse, se no mundo dos deuses houvesse lei e ordem, iria, agora mesmo, busca-lo e fazer justiça com minhas próprias mãos.
Mas não... em face do destino, submisso aos desígnios da espiritual criatura, só consigo me resignar e dizer sim, sim, sim.
Meses antes parafusei um velho espelho na escada de traves de madeira feita por um pedreiro que trabalhou para mim, muitos anos atrás. Loucuras. Encostei-a na parede, junto à porta de entrada, sem muita convicção: a obra não resultou tão atraente quanto, a princípio, prometia. Master Chifu tinha a mesma opinião pois, no raiar desse dia, dá na telha de escalar até o topo e daí lançar no abismo o duvidoso arranjo, partindo o vidro com grande estardalhaço. Metade resta preso à moldura, a outra explode em mil pedaços.
A foto comprova:
Por tantas ando suspeitando que Chifu seja Shiva, Deus da destruição renovadora, Deus da revolução. Chifu-Shiva, isso mesmo, as línguas evoluem, adotam novas sonoridades para designar uma única e mesma coisa, não resta dúvida, Chifu-Shiva é o nome!
Recolho os estilhaços e soergo a pesada armadura. Certifico-me de encosta-la em ângulo mais aberto e seguro. Desde então, não passa um único dia sem que eu tope com a peça sem graça e fique ruminando uma nova e mais feliz intervenção. Dado o “acidente”, procuro jogar com o resultado, é inútil lutar com o acaso, ainda mais quando ele traz a assinatura desse Chifu, emérito professor de arte, que ensina a seu modo traquinas, mas ensina.
Produto de intenção, ou não, interpreto o ato inconsequente como uma mensagem do mundo superior, fantasiar é direito de qualquer um e gratuito, mas para o contador de histórias, trata-se de um dever.
Preciso me precaver, contudo, contra os riscos muito reais da lâmina de vidro que se expôs com a cacetada, o bicho ventania ainda anda à solta e nunca está satisfeito, incluso o vemos aqui abaixo, de relance, poucos dias atrás, ainda rondando a obra ressuscitada, como sempre, completamente presente, ou seja, completamente esquecido do passado, sem traumas, sem culpas, sem predeterminações.
Tento ocultar a lâmina de vidro que ficou usando as folhas da árvore da esquina que tanto admiro, voilá!
Tento ocultar a lâmina de vidro que ficou usando as folhas da árvore da esquina que tanto admiro, voilá!
Toda vez que me sequestram, de passagem, eu também sequestro essas folhas morto-vivas e enterro o cabinho delas entre o vidro remanescente e o fundo de papelão sanfonado que protegia o avesso do espelho e estava oculto. A conversa com as potências do azar está funcionando, o artefato parece mais dinâmico, menos engessado, há esperança, o que acham?
A seu modo como-quem-não-quer-nada, Chifu vai também, poquito a poquito, se apropriando do belo tapete de musgo de um vaso retangular que depus na sacada, meu gramadinho muito especial. Faz um tempo eu finquei na esquina do vaso a cabeça em cerâmica de um extra-terrestre que trouxe, faz duas décadas, da comunidade rural de Ribeirão, em Caraí, Vale do Jequitinhonha.
A seu modo como-quem-não-quer-nada, Chifu vai também, poquito a poquito, se apropriando do belo tapete de musgo de um vaso retangular que depus na sacada, meu gramadinho muito especial. Faz um tempo eu finquei na esquina do vaso a cabeça em cerâmica de um extra-terrestre que trouxe, faz duas décadas, da comunidade rural de Ribeirão, em Caraí, Vale do Jequitinhonha.
Dias depois o busto aparece deitado, como vemos abaixo.
No momento do clic, Chifu aparece e me olha, num raio. A luz das águas marinhas me atinge no estômago e me manda, claramente, uma mensagem: “tira essa coisa daqui!”
Hereticamente, digo: “não!”, afinal, até os deuses têm que engolir certas coisas, tô certo ou tô errado?!
Ninguém sabe se pequena divindade está seguindo cursos divinatórios ou ordens divinais superiores que jamais contesta, obediente às cegas que é. Pode também estar agindo sob a influência psíquica difusa de seus "donos" ou quiçá de gente que habita o prédio, para lá das paredes da célula onde vive cada família, ou mesmo de alhures, do bairro, da cidade ou ainda mais, de além d’além.
Seria como uma antena de humores, suprassensível, retransmissora inconsciente e irresponsável, espécie de letra viva, recebendo, devolvendo, distribuindo escrituras enigmáticas que só uns poucos, uns loucos, poderíamos decifrar?
Pois adivinhem, aconteceu de novo, outra quebra. Dessa vez é só da coisa, do sonho não, sigo dormindo e só dou por conta da “fatalidade”, digamos assim, no dia seguinte, quando vou à cozinha fazer o café da manhã.
Adquiri no mesmo vale de Minas, em Araçuaí, de meu amigo Pedro pedreiro sertanejo exímio entalhador da madeira, o sublime São Francisco de Assis que está na foto.
Por uns tempos, postei o santo sobre a geladeira. O tremorzinho que a máquina faz ao ligar e desligar o motor acaba por bandear a imagem para nordeste à razão de uns poucos milímetros por dia, o que me obrigava a reposiciona-la ao menos uma vez por semana.
Era divertido.
A postura desse São Francisco, humilde embora altiva e elegante, mãos postas irradiando sobriedade e calma, a mira reta, como se seus olhos orassem desde a borda de um vale, não voltados para os céus, mas para as maravilhas do horizonte desse mundo (lua, sol e estrelas, paisagens, plantas e animais) por algum motivo me pareceu, à época, bastante adequada ao alto e frio pedestal, além do que a madeira escura se opõe, num belo contraste, com o cenário branco todo envolvente.
Muitos dias se passam até que identifico em minha coleção de estatuetas de barro uma que sempre amei, de autor anônimo, uma beleza de desengonço. Possui dois bugalhos de olhos que, embora muito mais tensos, nos miram diretos como os de Francisco, e também tem mãos postas que de fato não existem pois, por detrás, elas se fundem numa florzita. Truques de modelar.
Quem tem olhos pode ver que essa adorável feiúrinha faz lembrar certa dama, cabeça de uma nação, extirpada em circunstâncias escusas, não faz muito tempo.
Eis que as estranhezas das semelhanças me levam a depositar a senhorita lá bem ao lado do Francisco nascido em Assis, cidade afeita a terremotos.
O curioso é que os pequenos sismos do motor da geladeira agora levavam pouco a pouco os dois personagens para rumos divergentes, à direita e à esquerda, embora a boneca caminhasse mais lentamente, talvez porque seu corpo de terra mortal, áspera e quebradiça, a mantivesse mais atada ao chão.
Antes de me deitar, naquela noite fatídica, ligo a TV e a conecto ao Youtube: hora de pesquisar artes marciais em filmes e documentários. Esta tornou-se mais uma de minhas inúmeras manias mais ou menos inocentes, explorar a grande Biblioteca de Babel. Acabo trombando no filme idiota do link abaixo: “A Guilhotina Voadora”.
Os orientais inventaram todo um universo de socos, torções sutis, quebraduras, empurrões e pontapés estilizados e, com os séculos, produziram uma miríade de armas de metal reluzentes e afiadíssimas. Tem para todos os gostos e alcançam o máximo de letalidade uma vez inseridas no balé desenhado especialmente para cada uma.
Às vezes resulta sanguinário, mas a mi me encanta.
A tal guilhotina voadora, tema de outras ficções, é nada mais nada menos que um aro metálico que sustenta um fio ou lâmina cortante. Desde longe, à pé ou a cavalo, atada a uma corda, a arma pode ser arremessada sobre a cabeça do oponente e, se consegue enlaça-la, fatal, basta puxar a navalha e... zap!
Si!, si!, horrible!, todavia... interessante.
Desligo a TV e as imagens do filme, que minha mente, a princípio, deglute com dificuldade, pouco a pouco dissolvem-se nos mares interiores meus eus. É quando, ainda uma vez, corre em meu socorro Chifu-Shiva, espírito livre e precipitador. Talvez mergulhe, talvez subtraia, talvez devore meus sonhos ou eu os dele, não dá pra saber, o fato é que, pela manhã, lá está, sobre a mesa que fica ao lado da geladeira, a boneca decepada, como aparece na fotografia que fiz in locu.
Após o primeiro “choque”, digamos, que ademais passa despacito, pois já me acostumo ao modo ruidoso e ruinoso com que o tal deuzinho hindu se comunica comigo, trato de examinar a cena com a frieza de um perito forense ou, melhor, com o distanciamento de um auto-analista que não quer perder uma pluma da trama de significados de um sonho em particular.
A vítima jaz no fundo do precipício, após saltar sobre a cafeteira e o pacote contendo uns pães, o que me faz imaginar que foi empurrada de propósito para longe e não apenas tombou da borda. Se foi assim e como e porque isso aconteceu, difícil especular, pelo menos assim vamos aprendendo como os deuses são precisos, embora trabalhem com as forças do caos.
Recolho então, com todo cuidado, as partes desmembradas de minha querida dalminha (assim a chamo, em minúscula mesmo) e passo a examina-las mais de perto, com olhar esperto. Apesar de ter voado àquela distância, a coitada não perdeu nada além da cabeça e, quando a ponho de volta ao lugar a que pertence, encaixa milimetricamente. Tudo indica que, na arte da castração simbólica a garra de Chifu é implacável e impecável como a navalha de Monsieur Guillotine. O exame minucioso revela, por fim, que não existe o menor dano em qualquer outra parte do corpo: os braços raquíticos se salvam por milagre, a saia rija não tem lasca nem trinca, a flor da quaresmeira, frágil filigrana, continua imaculada.
Ahora uno se va a creer que estoy loco e que armo toda a cena e depois a fotografo. Peço para que não me associem aos perversos obscuros insensíveis incorrigíveis sujeitos que dominam os atuais grandes meios de manipulação, com suas pilantragens sem fim de edição de discurso, som e imagem, pelo amor de Deus, não sou assim não, de jeito nenhum, não me confundam, não sou trapaceiro, sigo regras, mantenho tradições, respeito por demais os cânones da literatura e nesse blog escrevo crônicas e não contos fantásticos. Se for escrever um conto fantástico eu aviso, viu leitores, isso aqui é um conto fantástico, podem ficar tranquilos!!
Sabem a maior virtude de um escritor? Exato, não confundir arte e realidade a não ser que a confusão, como a miúdo acontece ao cronista, se imponha, de fora para dentro.
Chifu, o gato, é ciumentinho. Na aparência, porém, tudo o que aparenta é não aparentar o que quer que seja, é a falta de máscara por excelência, fadado a tornar-se uma eterna criança, nunca deixar de brincar, nunca saber que vai morrer. Quem vê acha que age na mais pura inocência mas, no fundo, há um o motor, e é o ciúme.
O analista, o Allter, ao ouvir essas histórias, observa, em latan (le latin de Lacan) que meu inconsciente estruturado como uma linguagem é tal que está apenas e tão somente colando os cacos in-significantes, isto é, isso está lendo “fatos”, entre aspas, como palavras de um discurso mais ou menos consciente e coerente, ou seja, algo outro em mim está costurando supostas realidades materiais conforme meus estritos roteiros mentais para que façam sentido, pois ninguém vive sem sentido e é assim com todos os seres humanos, em tudo não enxergam nada senão o próprio umbigo.
Quando ele me diz essas coisas, de minha parte, dou uma de desentendido, finjo que não compreendo a língua morta, resisto, bato o pé e me nego a engolir a redução interpretativa, prefiro minhas pequenas fantasias de grandeza, me recuso a ver a mim mesmo menor do que penso que sou, um privilegiado, um escolhido, uma sensibilidade especial, tradutor de autores celestiais que se divertem ou se emocionam lendo as linhas tortas com que escrevem, eles mesmos, minha vida.
Claro, Chifu-Shiva leva sua setimilésima vida em esferas muito mais altas, nem sonho fazer a menor comparação. Tem vez que olho pra ele e penso, em minêreis: “iss' inda vai sê famôsu!” Tempos atrás eu descobri, por acidente, "óia procêis vê!", que o gaiato era rico! Ainda hoje me pergunto porque ele nunca me disse nada a respeito. Talvez não quisesse despertar minha cobiça, talvez não quisesse promover o meu ócio, talvez não quisesse fomentar minha arrogância, o que posso fazer, a vida é aceitar, obedecer, pelo que sigo artista, continuo pobre, porque assim quer o adorado e venerado mestre.
Sabem a maior virtude de um escritor? Exato, não confundir arte e realidade a não ser que a confusão, como a miúdo acontece ao cronista, se imponha, de fora para dentro.
Claro, Chifu-Shiva leva sua setimilésima vida em esferas muito mais altas, nem sonho fazer a menor comparação. Tem vez que olho pra ele e penso, em minêreis: “iss' inda vai sê famôsu!” Tempos atrás eu descobri, por acidente, "óia procêis vê!", que o gaiato era rico! Ainda hoje me pergunto porque ele nunca me disse nada a respeito. Talvez não quisesse despertar minha cobiça, talvez não quisesse promover o meu ócio, talvez não quisesse fomentar minha arrogância, o que posso fazer, a vida é aceitar, obedecer, pelo que sigo artista, continuo pobre, porque assim quer o adorado e venerado mestre.
Preciso dizer que todo o resto da coleção continua intocada, os alvos de Chifu são seletos e o timing, sempre perfeito. Entidade guerreira da paz interior, plena entrega em arco e flecha relaxados, coração forte porém liberto de orgulhos e mágoas, ânimo alerta todavia despido de boas ou más intenções, no fundo sabe muito bem o que faz.
Seu problema com espelhos é realmente um caso a ser estudado à parte. Emolduro aqui para vocês em outra foto a última intervenção da criaturinha na decoração da casa, é uma grande divindade artística, com quem me orgulho andar associado, oxalá! A gata Titia, ser comum como eu, aparece abaixo protagonizando uma das tramas de sua Alteza o paiaço:
Preciso dizer que todo o resto da coleção continua intocada, os alvos de Chifu são seletos e o timing, sempre perfeito. Entidade guerreira da paz interior, plena entrega em arco e flecha relaxados, coração forte porém liberto de orgulhos e mágoas, ânimo alerta todavia despido de boas ou más intenções, no fundo sabe muito bem o que faz.
Seu problema com espelhos é realmente um caso a ser estudado à parte. Emolduro aqui para vocês em outra foto a última intervenção da criaturinha na decoração da casa, é uma grande divindade artística, com quem me orgulho andar associado, oxalá! A gata Titia, ser comum como eu, aparece abaixo protagonizando uma das tramas de sua Alteza o paiaço:
Mas nossa história não termina por aqui. Ainda ontem, a coisa se deu mais uma vez. Levanto-me, lavo-me, vou à cozinha e começo a preparar o café da manhã. De repente, a bomba, a pancada surda! Sim, ele fez de novo! Precisou de seus muitos braços e força descomunal para impulsionar a coisa, de modo a jogar para bem longe. O lenho ultrapassa a porta da lavanderia e cai sobre o piso cerâmico, no exato lugar da queda anterior. Admirem com seus próprios olhos:
Está visto, o recado é direto: “desista, mortal, arriba, não lamente, a vida segue em frente, passe para outra cadência, vamos lá, toda permanência é ilusória”. Ok, finita a misericórdia, espatifa-se por inteiro o velho espelho de Lacan, quebra-se a falsa unidade do eu, a resistência, a resignação com a coisa acabada, não tenho escapatória, sou outro ou não sou mais nada.
Tinha pendurado adornos na escada, entre eles outra boneca, a mais esquisita que jamais comprei no sertão, que já teve as pernas coladas por mim após um primeiro tombo. Eu a chamo de Habana porque, quando estava íntegra, ela mandava para nós um eterno e ridículo adeusinho que agora, eternamente, não existe mais. Pobrecita essa, quedó destrozada!
Tão vendo aquele pé que caco restou? Hoje cedo topei mais ele ao me agachar para encher de ração a cumbuca dos gatos. Quando é assim, me sinto na obrigação de remendar o passado, talvez por culpa presumida, talvez por amor, carinho, cuidado, vá saber, mas para Habana não estou vendo muita solução. Adios, Habana!
Assim é que insisto e ponho de novo a escada de pé, o tempo de varrer mal e mal os cacos e tomar o rumo de minhas obrigações, ó gato desgraçado!
Todavia saio à rua empolgado pelos efeitos libertadores de mais esse empurrão estético das mãos do acaso, tenho planos fabulosos para a moldura da escada esvaziada de significações, sem falar no gancho de um desfecho para o post que escrevo, no ato, arte, vida, vida, arte.
Todavia saio à rua empolgado pelos efeitos libertadores de mais esse empurrão estético das mãos do acaso, tenho planos fabulosos para a moldura da escada esvaziada de significações, sem falar no gancho de um desfecho para o post que escrevo, no ato, arte, vida, vida, arte.
Mas a vida não quer guardar-se, a caminho do centro, a pé, vou distraído até que vejo surgir do nada, dos fundos de uma loja, um irmão de alma de Chifu. Era o que eu precisava! Outro mestre, será? Por enquanto, sei apenas que tem um par de olhos caramelados quase inverossímeis, aleluia, estamos hipnotizados!
Mas a vida não quer guardar-se, a caminho do centro, a pé, vou distraído até que vejo surgir do nada, dos fundos de uma loja, um irmão de alma de Chifu. Era o que eu precisava! Outro mestre, será? Por enquanto, sei apenas que tem um par de olhos caramelados quase inverossímeis, aleluia, estamos hipnotizados!
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